Em memória de Marília Caldeira, (31/07/1964, 15/02/2017) de quem não voltarei a escutar a frase reconfortante: “mano, eu entendo tudo o que escreves”.
Sabem do que é feita a ciência, meus amigos? Sentem o quanto dói construir o saber?
A ciência é feita de tentativa, erro, busca de conexões lógicas, teoria, hipótese, método, factos, medidas, aferições e inferições, validação por pares, ensaios, observações, angústia, desalento, negação das paixões, negação do Ego, abnegação, sacrifício, e sobretudo muita solidão.
Quando abrem um livro de Física, de Biologia ou de Astronomia, além da glória dos nomes que triunfaram num teorema, numa fórmula matemática, num modelo cosmológico, descritos numa linguagem simples e elegante, sentem a angústia e a solidão de quem sacrificou a vida para nos deixar essa dádiva?
Na construção da ciência vejo Marie Curie a morrer de cancro, por conta do material radioactivo que estudou durante anos. Vejo Newton dentro de um quarto escuro a tentar recuperar a visão, depois de se ter exposto ao exercício perigoso de observar o Sol directamente. Vejo Darwin angustiado pelo medo de expor à sua esposa, tão religiosa, a sua teoria da Evolução das Espécies. Vejo a sociedade londrina a escarnecer, do alto da sua ignorância atrevida, a imagem do “Homem descender de um macaco”. Amesquinhavam a grandeza de Darwin por conta da mesquinhez do seu próprio Ego. Vejo Hipátia a chorar a bela biblioteca de Alexandria, destruída numa pira infame, ateada por quem não queria outra verdade que não a “verdade” do seu delírio. Sinto o crepitar da madeira e dos papiros queimados, levando consigo a vida de Hipátia e o saber do mundo antigo! Sinto os passos cansados de Eratóstenes, que mediu sombras e distâncias e com isso determinou o tamanho da Terra.
Vejo Kepler angustiado, a mendigar as observações do mestre Tycho Brahe, triste por ter que deixar de lado o seu sonho de esferas perfeitas, rendendo-se à evidência das observações e dos seus cálculos que demonstravam que os movimentos dos corpos celestes são elipses e não esferas.
Empolgo-me com a coragem quase insana de Edward Jenner, que arriscou a vida do seu próprio filho inoculando nele a varíola bovina. Com isso descobriu a primeira vacina que erradicou a temível varíola humana, doença que matava milhões de pessoas. Hoje é um dos triunfos da medicina, a erradicação de uma doença infecto-contagiosa devastadora.
Vejo Albert Einstein no final da vida, pacifista, contrário à bomba atómica que ajudou a criar.
Sinto o desalento de Clair Patterson, que lutou uma vida inteira para demonstrar que o chumbo é venenoso, tendo por colossal inimigo a indústria petrolífera. David contra Golias.
A ciência é feita de tentativa e erro, de solidão e angústia. Ela assume os seus erros, a sua dificuldade em arredar o Ego do seu trabalho. Ela aceita que um determinado modelo possa um dia ser melhorado por outro mais elaborado ou mais abrangente. Einstein não negou Newton, acrescentou-lhe algo.
No século XIX deitaram-se colecções inteiras de meteoritos para o lixo, porque a incipiente ciência da altura negava a possibilidade de haver queda de pedras vindas do céu. Sim, a ciência e os cientistas não são imunes à crença. Ela é feita por homens e por mulheres comuns que fazem coisas incomuns, e que às vezes podem ceder à tentação: uma medida adulterada de emissões de gases poluentes aqui, uma “medicina alternativa” ali, uma medicina “quântica” acolá, são tentações que o “vil metal” coloca amiúde no caminho de muitos investigadores.
A ciência não oferece verdades absolutas, os seus modelos são quase sempre provisórios. Não significa que os modelos estão errados, significa simplesmente que estão incompletos.
A ciência não tem respostas aos porquês da vida, mas é excelente a responder aos “comos”: como funciona a Biologia, a Química, a Astronomia, por exemplo.
Claro, ela assume que não pode responder aos “porquês”: porque existimos, porque sofremos, de onde viemos, para onde vamos. Este é um campo que a ciência deixa para filósofos ou clérigos.
Foram necessários milénios para erguer o edifício elegante e sólido da ciência. Milhares de homens e de mulheres sacrificaram as suas fantasias mais doces em prol de uma verdade sólida mas cruel. Se hoje contamos com a medicina ou a tecnologia moderna que nos proporcionam um bem-estar que gerações inteiras apenas puderam sonhar foi porque milhares de pessoas tiveram a coragem de olhar o mundo como ele é, e não como gostariam que ele fosse. A magia da ciência talvez seja essa: foi por ver o mundo dessa forma que o puderam afinal transformar em algo mais próximo daquilo com que sonharam, sem na generalidade das vezes terem beneficiado com isso. Se hoje temos medicina nuclear, também a Marie Curie o devemos. Ela deu a sua vida para que outros hoje vivam mais e melhor.
Se acham que ser cientista é apenas o momento de glória do investigador que vai à televisão descrever a sua descoberta ou o seu triunfo, desenganem-se. A ciência, que tu às vezes renegas por medo da sua complexidade e por desejo de que o mundo seja aquilo que tu queres que ele seja e não aquilo que ele é, é feita de trabalho árduo, solidão e desalento, onde o cientista muitas vezes cai e se reergue!
Quando negas a ciência, desdenhas de milhares de vidas que se sacrificaram por ti e pelo teu bem-estar. Quando recusas uma vacina por medo e ignorância retiras significado à vida e ao trabalho do investigador, e colocas em risco a tua vida e a da comunidade apenas porque o teu medo falou mais alto do que a razão.
Os pseudo-cientistas e charlatães que te vendem ilusões de produtos naturais “bons” contra produtos químicos “maus”, “embrulhadas” em linguagem pseudo-científica, vivem do teu medo e à custa de cada homem e mulher que se sacrificou para determinar como o mundo físico realmente funciona e para te proporcionar as ferramentas que te permitem viver melhor do que a maioria da humanidade alguma vez sonhou viver!
“Homeopatia” ou “Medicina quântica” são apenas engodos disfarçados de ciência. E se a mezinha da tua avó funciona – e tantas vezes as mezinhas dos antigos funcionam! – só é necessário passar essa mezinha pelo crivo da ciência. Se se comprova a eficácia, passa de mezinha a medicamento. Foi esse o processo de síntese da aspirina e de milhares de outros compostos com eficácia médica comprovada!
Se entenderes o que é a ciência e o seu método, a sua honestidade, validade e força, honras os milhares de homens e de mulheres que trabalharam em prol desse conhecimento por muitos séculos.
Quando entendes e aceitas a validade do seu trabalho dás sentido e eternizas essas pessoas!
Quando compreendemos e aceitamos a verdade dos factos e com eles conseguimos fazer um mundo melhor, damos sentido à vida e à angustia solitária de cada cientista, e com isso damos sentido e dignidade à nossa própria existência!
Porque a ciência é a mais sólida construção do espírito humano, perante ela o delírio e o Ego repudiam e renegam, mas só o fazem porque sabem que não detêm a razão nem a verdade dos factos.
É sobre a verdade que a Humanidade se pode erguer, construir e ganhar significado, longe da lama primordial de um lago primevo de onde os nossos ancestrais saíram a rastejar há milhões de anos.
Se tivermos a coragem de sacrificar os nossos sonhos mais doces em prol de uma verdade cruel, no fim temos como prémio as ferramentas para mudar essa realidade angustiante. Esse é porventura o maior triunfo e a maior dádiva da ciência!
1 comentário
Grande artifice das palavras. Tratas as letras com tal mestria que chega a ser comovente toda essa racionalidade. U. Grande beijo. Ana guerreiro