Maria

Crédito: Danielle Storey

Na senda de vários artigos de promoção da auto-reflexão e de análise daquele suposto “conhecimento histórico que toda a gente tem e sabe”, deixo aqui mais três textos, neste caso de pendor religioso.

A religião católica é a religião mais bem-sucedida, dos últimos 2000 anos, no Ocidente.
Normalmente assumimos que tudo aquilo que sabemos, sempre foi assim, sempre foi do conhecimento público: sempre esteve presente.

Mas isto raramente é o caso, seja na religião, na ciência, na filosofia, na arte ou noutra área qualquer.
Temos, assim, que constantemente colocar em causa essas suposições (assumptions).

Dentro desta tema, gostei destes três artigos, um sobre Maria de Nazaré e dois sobre Maria Madalena.


Maria de Nazaré:
“A sua figura provocou uma das guerras mais violentas de sempre nos corredores da Igreja Católica. Houve agressões físicas, subornos e excomunhões. (…)
(…)
A 29 de Outubro de 1963, em pleno Concílio Vaticano II, a Basílica de São Pedro ia encher-se para decidir se a Virgem Maria merecia constar de um texto só para si ou se faria parte simplesmente de um texto geral. Se vencesse a primeira posição, Maria poderia ser consagrada co-redentora e isso significaria que Jesus teria tido a ajuda da mãe na salvação da Humanidade. Algo impensável para a Igreja mais conservadora.
(…) Entre os 2193 presentes, 1114 votaram contra, 1074 a favor e cinco não quiseram pronunciar-se. (…)
Mas 15 anos depois, num outro tipo de votação, foram os apoiantes de Maria que venceram. Em 1978 foi eleito João Paulo II, aquele que se tornaria no sumo pontífice mais dedicado à Virgem Maria.
(…)
Desde o início que se tentou ocultar o papel de Maria. Os evangelhos canónicos (os textos aceites pela Igreja Católica) quase não falam dela. O Evangelho Segundo S. Mateus, no qual é mais referida, consagra-lhe apenas 17 versículos, entre 1068. Em todo o Novo Testamento o seu nome é designado uma dezena de vezes – mesmo assim, menos do que, por exemplo, Maria Madalena.
(…)
Havia até comunidades que adoravam Maria como uma deusa. (…) E, em algumas, eram as mulheres que presidiam ao culto, baptizavam e consagravam. Os teólogos da Igreja condenavam estas práticas (…) Sem êxito. Os cristãos dividiam-se em facções e uma delas, a dos arianos, defendia mesmo que Jesus era filho natural de Maria e José e só depois se tornara o Messias. Perante uma situação que ameaçava tornar-se incontrolável, era urgente definir o culto a Jesus e reduzir o papel de Maria.
(…)
Foi com este objectivo que, no ano de 325, se convocou o primeiro concílio fundador da Igreja – que só podia acabar da pior maneira, com uma demonstração radical de força. Os bispos reuniram-se em Niceia (Turquia) e, por maioria, afirmaram Jesus como filho de Deus. Os arianos, que perderam a votação, foram excomungados de imediato.
(…)
O concílio decorreu em Julho de 431 na cidade de Éfeso (Turquia) e foi no mínimo escandaloso. Cirilo, que partia em desvantagem, uma vez que o imperador apoiava Nestório, enviou agentes a Constantinopla e distribuiu prendas e subornos entre os bispos. Depois, aproveitou a sorte. Foi o primeiro a chegar a Éfeso e nem esperou pelos bispos partidários de Nestório. Sem autorização imperial, abriu o concílio e, recorrendo-se de todos os textos antigos, mesmo dos não reconhecidos pela Igreja, contou a história de Maria e acrescentou novidades. Apresentou-a como virgem perpétua e garantiu que, depois de morrer, fora elevada ao céu ali mesmo, em Éfeso. Duas ideias que se tornariam mais tarde dogmas da Igreja. (…)”

Um excelente artigo da Sábado que nos faz pensar sobre todas aquelas ideias que assumimos que sempre foram “assim”, mas que afinal são assim só há alguns anos…


Maria Madalena:
“Maria Madalena foi “uma mulher rica, influente e crucial” na vida de Jesus Cristo. (…) mulher que a Igreja Católica tachou durante séculos como adúltera e prostituta.
(…)
A Igreja Católica canonizou Madalena, que é santa desde 2016, quando o papa Francisco a nomeou apostola apostolurum, “a apóstolo dos apóstolos”.
(…)
(…) o papa Gregório Magno, no ano 591, um dos introdutores do qualificativo de “prostituta” quando em sua homilia 33 afirmou: “Aquela a quem o evangelista Lucas chama de mulher pecadora é a Maria da qual são expulsos os sete demônios, e o que significam esses sete demônios senão todos os vícios?” Com essa afirmação, o sumo pontífice fez uma fusão de três marias: Maria, a pecadora, “que unge os pés do Senhor”; Maria, a de Magdala, liberada por Jesus de sete demônios, e entre as mulheres que o assistem; e Maria de Betânia, irmã de Marta e Lázaro. (…)”

E ainda num outro texto, também do El País:
“A Igreja precisa rever suas origens para eliminar o lastro de machismo para voltar a ser o que foi em seus primórdios: a Igreja de Madalena, mais que a de Paulo, menos autoritária e masculina.
(…)
Foram necessários 1.400 anos para que Roma acabasse aceitando que Maria Madalena não foi nem prostituta nem endemoniada. E se tivesse sido a mulher de Jesus? E se não tivesse sido nem sequer judia, e sim seguidora da filosofia gnóstica? E se tivesse sido a fundadora do primeiro cristianismo?
(…)
É compreensível o susto que a Igreja levou quando, em 1945, foram descobertos em Nag Hammadi, no Egito, um punhado de manuscritos de evangelhos gnósticos do século IV que tinham desaparecido porque a Igreja os destruíra ao considerá-los apócrifos. Neles fica clara, por exemplo, a estreita relação sentimental e espiritual entre Jesus e Madalena. Tão íntima que incomodava os apóstolos homens. Pedro chega a se zangar e pergunta ao mestre por que lhes oculta “segredos que só a ela revela”. E sentencia: “Que Maria saia de entre nós, porque as mulheres não são dignas da vida”.
(…)
Que Jesus e Madalena fossem conhecedores das doutrinas gnósticas e as discutissem entre si é algo revelado num desses manuscritos, quando se diz que Jesus “a beijava na boca”. Não se tratava, entretanto, só de um gesto de afeto. Beijar-se na boca era, para os gnósticos, a forma de transmitir sabedoria.
Hoje sabemos que na aurora do cristianismo houve o choque entre duas teologias, a dos gnósticos, protagonizada pelo grupo de Maria Madalena, e a do apóstolo forasteiro, Paulo de Tarso. Na teologia gnóstica não se fazia distinção hierárquica entre homem e mulher, e se ensinava que o mal não é fruto do pecado original, como continua defendendo a Igreja de hoje, mas sim da ignorância. O que salva para os gnósticos é a sabedoria.
Se tivesse triunfado a corrente gnóstica, que apoiavam não poucos dos primeiros bispos, a Igreja hoje seria totalmente diferente, já que nela a mulher teria o papel fundamental que teve no primeiro século depois da morte de Jesus. A teologia misógina de Paulo e a contaminação com o poder romano fizeram com que a mulher acabasse marginalizada dentro do cristianismo.
(…)
O cristianismo de Madalena não gostava do símbolo da cruz. As figuras representavam Jesus como o bom pastor ou jantando com seus apóstolos. Em algumas figuras, mostradas apenas a especialistas bíblicos, já aparecem mulheres vestidas de bispas.
Aquela igreja da alegria, da fraternidade, da ternura, do perdão e da esperança, sem distinção entre homens e mulheres, pobres e ricos, ainda está à espera de uma nova ressurreição cristã. O papa Francisco acaba de chamar Madalena de “a apóstolo dos apóstolos”. (…)”

Além da auto-reflexão que devemos ter, sobretudo sobre temas históricos, esta última parte também nos faz pensar em quão diferente seria o mundo atual se a facção gnóstica tivesse ganho há 2000 anos atrás.
Deixo a pergunta (sem resposta): se o gnosticismo fosse, desde há vários séculos, a cultura (religião/filosofia) dominante da civilização ocidental, onde/como estaria a nossa sociedade hoje?

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