Quando a Ciência precedeu a Ética: histórias de experiências em humanos – parte I

A procura por novo conhecimento pode, por vezes, conduzir a questões de carácter ético. Os fins podem nem sempre justificar os meios. Porém, há questões éticas que são subjectivas e há também quem não se queira preocupar com elas. Além disso, os valores éticos têm variado ao longo do tempo e mesmo hoje em dia são diferentes em civilizações diferentes. Por exemplo, nas sociedades ocidentais é típico a medicina dar prioridade à opinião do indivíduo em detrimento do seu bem-estar. Trata-se do princípio bioético da autonomia. Tal princípio é relativamente moderno e não é tido em conta de igual forma em todas as sociedades actuais.

Assim, sem surpresa, quando olhamos para o passado da ciência encontramos múltiplas histórias de terror. A ética nem sempre terá sido desprezada, pois em certos casos ou os princípios éticos ainda não estavam estabelecidos, ou a ignorância terá cegado os cientistas em causa das possíveis consequências das suas experiências. O que é certo é que a ética (ou a componente legal que a acompanha) acabou por evoluir como reacção a algumas das histórias que se seguem. Nesta primeira parte vou-me focar na história de Mary Rafferty.

 

A história de Mary Rafferty

Mary nasceu em 1844 (talvez 1843 ou 1845). Os pais dela eram irlandeses. Como muitos outros irlandeses nas décadas de 1840 e 1850, os Rafferty mudaram-se para os Estados Unidos para fugir à “Grande Fome” que ocorreu na Irlanda no final da década de 1840. À partida Mary terá nascido antes dos pais emigrarem, mas não se sabe ao certo.

Quando era pequena, Mary teve um acidente: “caiu na fogueira” e queimou o escalpe (desconhecem-se os detalhes). As queimaduras terão sido tão más que impediram o cabelo de Mary de voltar a crescer. Por isso, Mary começou a usar uma peruca.

Mary viveu a sua curta vida em Cincinnati (Ohio, Estados Unidos), onde trabalhou como doméstica. Em Dezembro de 1872, apareceu-lhe uma pequena úlcera no escalpe. A causa teria sido o raspar da peruca no escalpe.

Treze meses depois, em Janeiro de 1874, quando Mary tinha 30 anos, foi admitida no Good Samaritan Hospital (Cincinnati). O médico que a atendeu, Roberts Bartholow, reconheceu que a sua paciente tinha uma úlcera circular mais ou menos na parte de trás da cabeça (ver figura abaixo), a qual era tão severa que até o próprio crânio tinha desaparecido nessa zona. Por outras palavras, Mary tinha um buraco de 5 cm na cabeça e tinha o cérebro exposto. Roberts descreveu também que era possível ver a pulsação do cérebro! A úlcera produzia pus, mas Mary conseguia suportar bem a dor.

Screenshot 2019-11-30 at 16.02.01Xilogravura da cabeça de Mary Rafferty no artigo original de Bartholow [1]. O nome actual para esta localização seria lóbulo parietal posterior superior.

 
A úlcera era tão extensa que para Roberts Bartholow era claro que Mary estava às portas da morte, não havia nada a fazer… pela vida dela. Pela ciência havia muito a fazer! Roberts Bartholow reconheceu no cérebro exposto de Mary uma oportunidade única de estudo. Roberts pediu o consentimento de Mary para a usar como cobaia em experiências revolucionárias sobre o cérebro humano. Mary consentiu. Se este consentimento iliba ou não Bartholow é de certo questionável, mais ainda tendo em conta que Bartholow também descreveu a sua paciente como “rather feeble-minded” (isto é, pouco “brilhante”, e quiçá com carências cognitivas). Se Mary tinha ou não capacidade para decidir o seu destino, não sabemos. O que sabemos é que mesmo que tivesse, hoje não seria ético praticar as experiências a que Roberts submeteu Mary.

Que experiências queria Roberts fazer com o cérebro de Mary?

Aquando das experiências, Roberts tinha apenas 42 anos, mas não só era médico, como também era professor no Medical College of Ohio. Roberts era também um académico de prestígio, tendo diversas publicações em vários tópicos de Medicina. Em 1872, Roberts tinha fundado o “The Clinic”, a primeira revista médica semanal do ocidente [1].

Ao contrário da maioria dos seus colegas médicos, que seguiam o método empírico no tratamento dos seus doentes, Roberts Bartholow era um seguidor do novo método fisiológico. O método empírico era baseado em observação directa dos pacientes e os diagnósticos e tratamentos tinham por base a comparação com outros casos semelhantes. Em contraste, o método fisiológico postulava que a medicina deveria ser guiada pelo conhecimento científico. Ou seja, a medicina deveria não só beneficiar da observação directa do método empírico, como também da ciência experimental, em particular aquela que usava animais vivos. Assim, Bartholow não só era médico, como também era cientista: ele próprio tinha já usado animais para testar os efeitos das medicinas tradicionais e modernas do seu tempo. (No tempo de Bartholow também não havia normas éticas a cumprir no uso de animais para fins científicos, claro.)

Entre os muitos interesses de Bartholow, havia dois que poderiam ser explorados em Mary. Primeiro, naquela época não se sabia bem quais as funções executadas pelo córtex cerebral humano. Em 1870, Fritsch e Hitzig, dois cientistas alemães, tinham publicado um estudo no qual descreviam o que acontecia quando estimulavam com electricidade o cérebro de um cão. Tinham observado, por exemplo, que a estimulação em dadas regiões do cérebro do cão produziam efeitos motores específicos (movimentos da cabeça, olhos, face, pernas, etc.). Por outro lado, havia grande interesse em compreender o uso de estimulação eléctrica do cérebro para vários tratamentos médicos. Por exemplo, Bartholow já usara choques eléctricos para tratar homens com disfunção sexual. Assim, Bartholow decidiu experimentar electrocutar o cérebro de Mary.

De acordo com o artigo médico publicado por Roberts Bartholow (tradução livre):

“Quando a agulha entrou no cérebro, ela queixou-se de uma dor aguda no pescoço. De forma a suscitar reacções mais claras, a intensidade da corrente foi aumentada… ela continuou a mostrar-se em grande aflição, e começou a chorar. Quase de seguida, a mão esquerda moveu-se como se ela tivesse tentado pegar num objecto em frente dela; nesse momento o braço agitou-se num espasmo; os olhos dela ficaram fixos, com as pupilas dilatadas; os lábios estavam azuis, e ela espumou-se da boca; a respiração dela tornou-se estertorosa; ela perdeu a consciência e teve uma convulsão violenta do lado esquerdo. A convulsão demorou cinco minutos, e foi seguida por coma. Ela recuperou a consciência vinte minutos após o começo do ataque e queixou-se de fraqueza e tontura.”

Depois de 4 dias de experiências (com um de descanso), Roberts escreveu que “Mary está decididamente pior, ela mantém-se na cama, está estúpida e incoerente” (notar que o “estúpida” talvez tivesse o sentido de apática). Nesse mesmo dia, Mary morreu.

Com as suas experiências, Roberts Bartholow conseguiu mostrar pela primeira vez a localização do controlo motor e sensorial no cérebro humano. As conclusões que se podiam extrair da sua investigação eram óbvias (e talvez por isso, no seu artigo Roberts detalhou apenas os resultados, sem dar qualquer interpretação destes). Com o seu estudo ficou a conhecer-se a topografia dos centros motores no córtex, a simetria funcional entre os hemisférios cerebrais, o controlo bilateral cruzado e coordenação de movimentos, e a relação directa entre o cérebro humano e animal (os resultados em Mary eram muito semelhantes aos observados em animais).

Porém, os problemas éticos eram evidentes. No mesmo ano de 1874, em reacção ao trabalho de Bartholow, a sua prática de “vivissecção humana” foi condenada como sendo desumana. Decidiu-se, por isso, proibir experimentação em humanos, excepto apenas se tal experimentação “tenha a esperança de salvar a vida do paciente, ou a vida de um bebé no útero”.

Bartholow não voltou a repetir as suas experiências, mas continuou a sua vida de académico. Em 1893 recebeu o título de Professor Emeritus no Jefferson Medical College em Filadélfia.

 

Na segunda parte falar-vos-ei doutras histórias onde a ciência precedeu a ética.

[1] Harris, L. J., & Almerigi, J. B. (2009). Probing the human brain with stimulating electrodes: the story of Roberts Bartholow’s (1874) experiment on Mary Rafferty. Brain and cognition, 70(1), 92-115.

 
'Will you be truthful with me please?'

“Pode ser honesto comigo, por favor?”
“Desculpe, mas isso é contra a ética médica!”

Quando há um conflito entre vários interesses ou valores, é possível que a honestidade não seja ética.

4 comentários

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  1. Excelente texto e reflexão!!!! 😉

    O nosso leitor Guido Garcia Angelo partilhou este teu texto no Facebook dele.
    https://www.facebook.com/Guido.G.DAngelo/posts/10159316832026562
    Gostei bastante de algumas considerações que ele fez:
    – “é complicado julgar alguém de um tempo sob a ótica do nosso tempo…
    Se vc fosse Bartholow… no tempo de Bartholow e com os conhecimentos da ciência de Bartholow…o que vc faria?”
    – “a eugenia, defendida por inúmeras autoridades científicas… Já desde os meados do sec xix.”
    – “A ciência é amoral e aética… É um método.. a ética e a moral é da responsabilidade humana”

    Gosto sobretudo desta última frase, porque faz a separação entre ciência e cientistas, entre o método e a ética humana.
    Uma coisa é a ciência, per se. Outra coisa são os Humanos, com a sua ética, a sua moral, os seus valores, os seus objectivos.

    abraço!

    1. Obrigado. 🙂

      O facto de ter havido uma reacção imediata ao artigo do Bartholow mostra que à partida já naquele tempo o que ele fez era no mínimo questionável… (Entrevistas com pessoas que se deram com Bartholow confirmam mais ou menos esta visão.) Mas de certo que andando mais para o passado, o que ele fez seria quiçá aceitável (ou simplesmente inquestionável).

      A eugenia é sem dúvida o melhor exemplo moderno. Hoje ainda se vive a reacção anti-ciência a esses tempos (blank slate).

      Sem dúvida, a Ciência não quer saber da ética, daí que haja conflitos. Falei disso em maior detalhe num outro artigo:
      http://www.astropt.org/2019/03/05/ciencia-etica-e-religiao-parte-i/
      http://www.astropt.org/2019/04/02/ciencia-etica-e-religiao-parte-ii/

      Abraço,
      Marinho

  2. A meu ver psicopatas (sem empatia) há em todas as áreas, portanto, dentro do meio científico também os poderemos encontrar e, infelizmente, ao longo da história podemos constatar a presença deles, vide por exemplo o caso do menino Paulinho, de 10 anos, filho do Paulo Pavesi, que teve seus órgãos para doação retirados enquanto ele ainda estava vivo; e ‘pus invisível’ que só se pode enxergar com olhos clínicos…alguém já ouviu falar?

    Alguém conhece o livro “Root Canal Cover-Up” do doutor George Meining, que alerta sobre as descobertas que o Dr. Price fez sobre tratamento de canal e as consequências para a saúde de se manter na boca esses dentes-mortos?

    E de que forma podemos evitar de nos depararmos com algum desses em uma situação de vulnerabilidade, uma mesa cirúrgica para tratamento, cirurgia do cérebro ou do coração?

    Mas a morte é a maior e talvez seja a única forma de justiça que exista porque ela alcança todos…

    1. Olá Keka,
      Não me posso pronunciar sobre a maioria dessas questões, por não estar a par disso.
      Em relação à última questão, imagino que a forma de diminuir tais riscos (quando existam) será ter observadores externos…

      Quanto à morte, uma vez que “mata” de forma indiscriminada, não me parece que introduza nenhum tipo de justiça… No máximo limita a injustiça.

      Cumprimentos,
      Marinho

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