Quando a Ciência precedeu a Ética: histórias de experiências em humanos – parte VIII

Em 1947 estabeleceu-se o Código de Nuremberga, aquele que é considerado um dos primeiros documentos a definir regulamentação ética para experimentação em humanos. O objectivo era claro: impedir que “experiências” como aquelas que foram conduzidas pelos nazis não pudessem ser repetidas. Recordo que entre as várias atrocidades cometidas pelos nazis nos campos de concentração, uma delas foi usar judeus como cobaias para estudar a eficiência mortífera de armas químicas, venenos e muito mais. O Código de Nuremberga defende a necessidade de obter consentimento informado da cobaia, bem como a necessidade de haver um objectivo científico claro que possa contribuir para um futuro melhor. A experiência deve também ser insubstituível, isto é, só é justificado usar uma cobaia humana se não houver outra forma de obter o conhecimento que se pretende alcançar. Mais importante que tudo, não se pode sacrificar os interesses da cobaia em favor dos interesses da sociedade ou da ciência.

Se por um lado é claro que o Código de Nuremberga tem sido ignorado de forma recorrente, em particular de forma gritante no Projecto MKUltra, por outro é importante reconhecer que estas e outras considerações éticas não são suficientes para regulamentar a ciência actual. Por isso, nesta última parte deste artigo vou abordar os problemas éticos que a ciência actual e de um futuro (quiçá) próximo começam a criar. Tal como nos outras partes, irei focar-me nas Neurociências.

As Neurociências têm o potencial de desvendar verdades inconvenientes que poderão alterar a nossa sociedade. Não obstante não haver provas definitivas, todas as evidências actuais apontam para que a nossa noção de livre arbítrio seja falsa. Julgamo-nos “livres”, mas podemos não o ser. As decisões que tomamos num dado momento são determinadas pela actividade cerebral, a qual é condicionada por várias circunstâncias sobre as quais não temos qualquer controle. Somos condicionados pela neurobiologia, por níveis hormonais, por experiências da nossa infância, por actividade metabólica intra-uterina (antes de nascermos), pela genética que recebemos e por toda a herança evolutiva e social que nos define. Será que entre tudo isso sobra algum espaço para o livre arbítrio? É possível que não, pelo menos em decisões que podem determinar o curso da nossa vida.

Se o livre arbítrio é questionável, o que fazer com responsabilidades sociais? Fará sentido punir alguém por um acto que não podia controlar? É possível que qualquer comportamento anti-social e/ou criminal possa ser atribuído a uma desordem mental, o que por sua vez será uma doença cerebral. Se por um lado no passado a maioria dos doentes mentais acabavam na prisão ou pior, hoje em dia a situação não é muito melhor, encontrando-se ainda muitos esquizofrénicos na prisão [1]. Além destes, também é sabido que há uma forte correlação entre comportamentos criminosos violentos e malformações no lobo frontal do cérebro [2]. Se por um lado ter uma malformação ou um tumor cerebral não garante que o indivíduo tenha um comportamento criminoso, por outro, muitos indivíduos que são presos ou condenados à morte têm de facto tais malformações [2]. Por outras palavras, ter essas malformações talvez não seja uma condição suficiente para que se comportem de forma violenta, mas parece ser um importante factor de risco quando combinado com outras circunstâncias. A expectativa é que no futuro se venha a compreender melhor a base “mecânica” de um maior número de comportamentos humanos, sendo à partida possível definir até que ponto um indivíduo tinha ou não possibilidade de se comportar de forma diferente em determinadas circunstâncias. Para já o que é claro é que continuamos a prender ou a assassinar vítimas de doenças cerebrais. E iremos continuar a fazê-lo pelo menos até ao momento em que tenhamos diagnósticos fiáveis de cada uma das condições que conduzem a actos violentos e/ou anti-sociais.

É importante fazer notar que sentir que somos os autores das nossas acções não prova que o somos de facto. As evidências sugerem que a nossa mente funciona de forma a criar uma ilusão de controle sobre as decisões que tomamos. Por exemplo, a nossa mente “convence-se a si própria” de que é a autora de algo caso pareça que o deva ser, mesmo que não o seja [3]. É aliás fácil de reconhecer a nossa capacidade (tanto consciente como subconsciente) de criar narrativas a posteriori para explicar o nosso comportamento passado.

O livre arbítrio assume ainda que teríamos a capacidade de nos comportamentos de forma diferente numa dada situação. Infelizmente, tal suposição é impossível de testar visto não podermos reviver nenhum momento do passado de forma igual.

Assumir que o livre arbítrio é possivelmente uma mera ilusão terá consequências que irão bastante além de uma reforma no sistema judicial [*]. A forma como cada indivíduo se vê em interacção com a sociedade poderá mudar, caso reconheçamos a possibilidade de sermos escravos das circunstâncias.

Será positivo informar qualquer pessoa de que o livre arbítrio pode ser (ou é) uma ilusão? É claro que mesmo que o livre arbítrio seja uma ilusão, tal não muda a nossa percepção da realidade e poderemos continuar a viver da mesma forma. Porém, nem todos poderão pensar desta forma e, em certos casos, as consequências podem ser devastadoras. Por exemplo, será que um doente psiquiátrico estará disposto a investir o seu esforço numa terapia sabendo que à partida a decisão de se esforçar não é sua? O saber-se que não temos livre arbítrio pode conduzir a decisões indesejadas que de outro modo não consideraríamos, quer o livre arbítrio existisse ou não. Note-se que mesmo sem livre arbítrio continuamos a ser condicionados pelas circunstâncias, o que inclui o conhecimento de que dispomos.

 

O possível (quasi-)determinismo do nosso comportamento abre portas para um enorme conjunto de problemas éticos ligados a novas tecnologias de classificação de estados mentais.

Para lá das tais malformações referidas em cima associadas a comportamentos violentos, também já se mostrou que estes e outros criminosos tendem a ter menor actividade cerebral no lobo frontal [4]. Será que podemos vir a ter medidas de controlo sobre indivíduos com reduzida actividade no lobo frontal? Como referi em cima, o nosso comportamento pode (e deve) ser condicionado por outros aspectos. Não obstante, não seria a primeira vez que ciência incompleta seria mal interpretada e mal usada em sistemas legais. O polígrafo é um exemplo de uma tecnologia que não é garantido fornecer informação fiável, mas que tem sido usada por esse mundo fora.

Mesmo que reconheçamos os limites da tecnologia, os problemas podem permanecer. Por exemplo, o resultado de um exame neurológico poderá ser reduzido a duas probabilidades: a probabilidade de um indivíduo ter comportamentos violentos e a probabilidade do exame neurológico estar correcto. Quão altas terão que ser as probabilidades para que se justifique tomar medidas? Será ético ignorar o resultado do exame? Poder-se-á antes questionar se é ético fazer o exame.

Se se fizer o exame, será ético informar o examinado? O conhecimento do resultado poderá influenciar o examinado a comportar-se de forma diferente! O resultado do exame pode tornar-se numa profecia auto-realizável, onde o resultado do exame pode ser condicionado pelo acto de informar o examinado.

De forma mais genérica, poderemos vir a ter tecnologias que consigam ler traços da personalidade, histórico psiquiátrico, vulnerabilidades emocionais e propensões comportamentais de qualquer pessoa. Não é difícil de imaginar problemas éticos na aplicação destas tecnologias em entrevistas de emprego, em avaliações para seguros de saúde, ou até mesmo para definir quem é que deve ter acesso a benefícios sociais. Será o uso desta tecnologia uma forma de discriminação?

Para evitar estes problemas, já se avançou a ideia de que se deve estipular um novo direito fundamental: o direito à “liberdade cognitiva”, isto é, o direito a manter privados e autónomos os nossos estados mentais.

Será suficiente? Eu diria que provavelmente não.

Para lá do “ler”, teremos (temos) também o “manipular”. A indústria farmacêutica, e não só, tem um forte interesse no desenvolvimento de novas drogas que possam ser usadas para ampliar as nossas capacidades naturais. Melhorar a nossa memória, atenção, estado de “espírito”, etc., já é possível hoje em dia, ainda que com várias limitações. Sem restrições, o expectável é que o doping mental se torne cada vez mais comum e com efeitos mais notórios. Mais uma vez as consequências não são difíceis de imaginar. Por exemplo, poderá criar-se uma pressão social que fomente o consumo de drogas, pois aqueles que não o fizerem poderão não ser competitivos na sociedade do futuro. Se drogas com efeitos mais poderosos forem mais caras, o resultado será um maior desnível socioeconómico. (Numa distopia mais perversa, as drogas teriam efeitos secundários adversos, mas a população seria forçada a desprezá-los para se manter competitiva. Uma distopia que, infelizmente, faz parte do desporto actual.)

Já que falo em distopias, pode-se acrescentar a hipótese de manipulação de interesses e opiniões individuais e sociais. Os escândalos recentes de manipulação de eleições podem ser os precursores de uma realidade negra no futuro, usando não só controle de informação e desinformação, mas também usando outros meios de estimulação e influência de estados mentais. O conceito já existe no neuromarketing [5].

 

Se reconhecermos que o conhecimento não justifica todos estes riscos, poderíamos sugerir que a solução neste momento é proibir a investigação… Trata-se de uma “solução” ingénua, pois não será possível impô-la a nível global, nem será possível garantir que a mesma seja tida em conta. Além disto, a ciência evolve muitas vezes por acidente. Por exemplo, ao tentar-se encontrar uma droga que trate a doença de Alzheimer poderá descobrir-se que a mesma droga é capaz de ampliar a memória de uma pessoa saudável. Uma vez descoberta a “bomba”, será provavelmente uma questão de tempo até ser usada…

O aspecto positivo de tudo isto é que pelo menos estamos a considerar os problemas antes deles emergirem de forma mais dramática. Há por isso uma ténue esperança que consigamos tomar as devidas precauções.

 

“Portanto, quem é que vota a favor da ideia de permitir clonagem?”
Depois de um artigo em oito partes sobre negligências éticas na ciência, alguns poderão questionar-se se os cientistas são particularmente propensos à falta de ética. Não há evidências que tal seja o caso. Trata-se antes de oportunidade e proeminência. Por um lado os cientistas têm os meios, por outro se cometerem atrocidades terão maior escrutínio e exposição do que outros indivíduos na sociedade.

Nota:
[*] Convém clarificar que mesmo sem livre arbítrio, um sistema de punição tem consequências no número de crimes praticados. As evidências mostram que um sistema punitivo mais pesado (com pena de morte, por exemplo) reduz o número de crimes de carácter planeado (mas não os “espontâneos”). Isto implica que as circunstâncias pesam nas decisões que tomamos, tenhamos nós controle ou não sobre as mesmas.

Bibliografia:

[1] Arboleda-Florez, J. (2009). Mental patients in prisons. World Psychiatry8(3), 187.
[2] Brower, M. C., & Price, B. H. (2001). Neuropsychiatry of frontal lobe dysfunction in violent and criminal behaviour: a critical review. Journal of Neurology, Neurosurgery & Psychiatry71(6), 720-726.
[3] Wegner, D. M., & Wheatley, T. (1999). Apparent mental causation: Sources of the experience of will. American psychologist54(7), 480.
[4] Raine, A., Meloy, J. R., Bihrle, S., Stoddard, J., LaCasse, L., & Buchsbaum, M. S. (1998). Reduced prefrontal and increased subcortical brain functioning assessed using positron emission tomography in predatory and affective murderers. Behavioral sciences & the law16(3), 319-332.
[5] https://en.wikipedia.org/wiki/Neuromarketing

Para uma discussão um pouco mais alargada sobre o tema, recomendo o artigo:

Fuchs, T. (2006). Ethical issues in neuroscience. Current opinion in Psychiatry, 19(6), 600-607.

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