Calculadoras – Parte III

“Está abaixo da dignidade dos homens notáveis perder o seu tempo em cálculos quando qualquer rústico poderia fazer o trabalho com a mesma precisão com o auxílio de uma máquina.” [1] – Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716)

 

Colocando de parte a altivez privilegiada de Leibniz, reconhecemos nestas palavras a noção visionária de que o Homem poderia vir a usar máquinas para realizar tarefas metódicas e, por definição, mecanizáveis. Hoje vivemos à beira da revolução da robótica, sendo fácil reconhecer que muito do trabalho (humano) actual irá desaparecer. Para aqui chegarmos contámos com o contributo de Leibniz para o desenvolver de calculadoras mecânicas, as precursoras das calculadoras electrónicas e dos computadores.

Como vimos na segunda parte, a calculadora mecânica de Pascal permitia somar e subtrair. Incrível! E multiplicar e dividir? Bom, se nos recordarmos que tanto a multiplicação como a divisão são apenas somas e subtracções repetidas, tal implica que a pascalina também permitia fazer essas operações… Bastava que o utilizador tivesse paciência para fazer as repetições de forma manual. Por exemplo, para multiplicar 27 por 4, o utilizador teria que adicionar o 27 quatro vezes. Isto é:

De forma similar, para dividir 27 por 4, poderia subtrair de forma repetida o 4 e contar o número de vezes que o conseguia fazer:

Neste caso, conseguia subtrair o 4 seis vezes ao 27, sobrando 3 unidades. Isto significa que 27 a dividir por 4 dá 6, com resto 3.

Como é claro, a tradução da multiplicação em somas é um trabalho muito enfadonho se os números em causa forem elevados. No caso da divisão, o processo também é muito demorado se o resultado que se procura encontrar for um número elevado. Assim sendo, é claro que a pascalina não é adequada em geral para multiplicar ou dividir.

Leibniz quis ir mais longe e desenvolver uma máquina que também fizesse multiplicações e divisões. Partindo de uma máquina capaz de somar e subtrair, a sua ideia era implementar a multiplicação e a divisão através do método de repetição num processo “automático”.

Recordo que a pascalina fazia subtracções através da transformação de subtracções em somas usando o método do complemento aritmético. Leibniz, pelo contrário, assumiu que a subtracção poderia ser feita rodando o mecanismo no sentido contrário. Em termos teóricos faz sentido e é o mais óbvio: se por um lado a soma é traduzido na rotação de discos num sentido, a subtracção deve ser a rotação no sentido oposto. (Pascal não terá implementado esta ideia presumivelmente por problemas técnicos que ultrapassavam a engenharia da altura.)

A ideia de Leibniz consistia em criar uma máquina que permitisse somar (ou subtrair) uma quantidade um dado número de vezes dando voltas a uma manivela. Enquanto que na pascalina, o utilizador obtinha a soma (ou subtracção) através da própria inserção dos números, no caso da máquina de Leibniz, havia a possibilidade de introduzir os números e de seguida aplicar a operação dando voltas a uma manivela (e não só). Para isto, Leibniz inventou a roda de Leibniz:

 

O cilindro vermelho com o disco dentado tem dez dentes, de forma a que cada posição deste corresponda a um algarismo. A pascalina tinha vários discos destes acoplados entre si para representar números com vários dígitos. Uma soma correspondia à introdução sequencial de dois números, o que por sua vez fazia rodar estes discos dentados. A inovação de Leibniz está no cilindro amarelo: um cilindro também com dez dentes, mas neste cada dente tem um comprimento diferente, tal como representado.

Na máquina de Leibniz, uma rotação da manivela correspondia a uma rotação do cilindro amarelo. No caso representado na figura, uma rotação completa da manivela faria com que o cilindro vermelho fosse rodado em três unidades, porque o cilindro amarelo só tinha três dentes a interagir com o cilindro vermelho. Isto significa que dependendo do sentido de rotação dos cilindros, poderíamos usar a rotação do cilindro amarelo para produzir somas ou subtracções de três unidades por cada rotação da manivela ao número que estivesse representado no cilindro vermelho (que estaria apresentado num mostrador exterior, tal como na pascalina).

E se quiséssemos somar ou subtrair um outro algarismo que não o três? Bastava fazer deslizar o cilindro amarelo em relação ao vermelho (mantendo os eixos de rotação paralelos) de modo a alterar o número de dentes que pudessem interagir por cada rotação do cilindro amarelo. O vídeo abaixo ilustra a ideia:

Como é claro, para que a máquina de Leibniz pudesse ser útil precisava de poder representar números com vários dígitos. Como?

Tal como na pascalina, a calculadora de Leibniz também tinha vários cilindros vermelhos, um por cada dígito. Para aplicar as operações, a forma de funcionamento da calculadora era sequencial, fazendo com que o cilindro amarelo pudesse ter “contacto” com cada um dos dígitos, um a um.

Por exemplo, consideremos a multiplicação de 123 por 769 (não vou entrar nos detalhes da engenharia que permitiria a implementação do que se segue). Primeiro colocava-se o número 123 na calculadora, através da rotação de três cilindros vermelhos, um para cada dígito. De seguida, começando pelas unidades, definia-se o 3 no cilindro amarelo, acoplava-se o cilindro amarelo ao cilindro vermelho das unidades e fazia-se rodar o cilindro amarelo 9 vezes. Depois passava-se ao algarismo das dezenas, ou seja, acoplava-se o cilindro amarelo ao cilindro vermelho das dezenas e fazia-se com que neste caso o cilindro amarelo tivesse apenas dois dentes a interagir com o cilindro vermelho. Rodava-se 6 vezes… Por fim, para o algarismo das centenas movia-se o cilindro amarelo para interagir com o cilindro vermelho das centenas, permitindo apenas que um dente do cilindro amarelo fizesse mover o cilindro vermelho por cada rotação. Sete rotações depois et voilà, teríamos o resultado. Em termos aritméticos, tinha-se aplicado a seguinte propriedade da multiplicação:

(Recordo que, tal como na pascalina, os cilindros vermelhos estão acoplados. Isto significa que ao fazer rodar o cilindro das unidades este passa de 9 para 0 e quando tal acontece, o cilindro adjacente das dezenas roda uma unidade.)

Para fazer a divisão de dois números o processo era semelhante, ainda que com três diferenças importantes. Consegue adivinhá-las?

Primeiro, como disse, a divisão fazia uso de subtracções e não de adições, o que se traduzia em rodar a manivela em sentido contrário ao usado para a adição. Segundo, a divisão não podia ser feita começando nas unidades e ir avançando pelas dezenas, centenas, etc. tal como na multiplicação. Pelo contrário, e tendo em consideração o algoritmo da divisão ensinado na escola primária, o processo tinha que começar no maior dígito do divisor. Terceiro, o resultado da divisão teria que ser apresentado num mostrador diferente daquele que era usado na multiplicação – teria que ser um mostrador que contaria o número de vezes que tínhamos rodado a manivela. (Estou a omitir vários detalhes para simplificar. Se desejarem mais detalhes, peçam-nos nos comentários.)

Para quem não está recordado do algoritmo da divisão, façamos um exemplo: 1050 a dividir por 25. Primeiro “alinhamos à esquerda” o divisor (25) com o dividendo (1050) de tal forma que só consideramos os dois maiores dígitos do dividendo (10). Não dá: o divisor tem que ser menor que o dividendo, pelo que o passo seguinte é considerar três dígitos do dividendo (105). Neste caso, o 25 “cabe” quatro vezes no 105 (na máquina de Leibniz isto significaria que poderíamos subtrair o 25 quatro vezes ao 105). Obtém-se um resto de 5, ao qual se junta o último algarismo em falta do 1050, o zero. 50 a dividir por 25 dá 2 (duas subtrações do 25). O resultado da divisão é, portanto, 42. A máquina de Leibniz seguia este mesmo processo.

Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716). Um dos grandes nomes da Matemática que, a par de Newton, desenvolveu as bases do Cálculo Diferencial e Integral (de forma independente).

Infelizmente, Leibniz não conseguiu colocar a sua calculadora a funcionar. A engenharia da época ainda não estava à altura. Só um século e meio depois é que o inventor francês Thomas de Colmar (1785-1870) conseguiu implementar as ideias de Leibniz na Arithmomètre, a primeira calculadora mecânica produzida em massa. As mesmas ideias continuaram a ser usadas já no século XX, na popular calculadora portátil Curta.

Só já na década de 1960 é que surge a calculadora electrónica, tornando a calculadora mecânica obsoleta. Curiosamente, a calculadora electrónica usa também parte do legado de Leibniz: o sistema binário. Na quarta parte iremos conhecer a calculadora electrónica.

Para os mais curiosos deixo um vídeo sobre o funcionamento de uma calculadora mecânica (funcional), onde poderão apreciar muitos dos detalhes de engenharia que omiti neste artigo:

 


“Eu penso, logo tu não.” Na verdade, o acto de pensar está mais no formular da questão do que na aplicação de um método decorado e “mecanizado”.

[1] Tradução livre da frase de Leibniz: “… it is beneath the dignity of excellent men to waste their time in calculation when any peasant could do the work just as accurately with the aid of a machine.”

 

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.