Não consigo entender toda a problemática associada ao risco de ficar com coágulos sanguíneos no cérebro vs. ser vacinado contra a COVID-19.
Quer dizer, consigo entender na medida em que este é o normal processo da ciência. Há avanços e recuos, e há pausas para re-avaliação.
O problema é que este processo normalmente não se vê. Só se tem a vacina no mercado passados 10 anos, e aí todos os problemas já foram resolvidos.
Atualmente, como estamos a ver publicamente a “ciência em movimento”, tem que se ter em consideração essa percepção pública.
E é isto que eu “não entendo”: porque não se dá relevância a uma mais eficaz comunicação de ciência?
A forma como se está a comunicar, tem aumentado o nível de ansiedade sobre as vacinas e faz aumentar o número de pessoas anti-vacinas.
Porque é isso que se vê na comunicação social: “vacina tem problemas”.
Isto leva a que menos pessoas queiram ser vacinadas, e, inevitavelmente, mais pessoas irão ser hospitalizadas com problemas graves resultantes da COVID-19. Como já se está a ver nos EUA ou no Canadá (quem tem chegado aos hospitais, são os não vacinados):
Aliada à ineficiente comunicação científica, parece-me que temos um outro problema: a ignorância da população, que ouve/lê as notícias sob um viés cognitivo que não lhe permite avaliar devidamente grandes números.
Assim, vamos a números:
Antes disso, é preciso dizer que nenhuma vacina é 100% eficaz nem 100% segura. Como nada na vida!
Supondo que uma vacina é 99,9% segura, será que para ter mais 0,1% (por exemplo) de segurança, se deve colocar em causa a confiança da vacina em 1% da população, ao tornar isto numa problemática comunicacional no espaço público?
Será que neste equilíbrio, vale a pena arriscar perder 1% da população para ter mais 0,1% de segurança? Is it worth it?
Sobre a vacina da Astrazeneca, temos aqui alguns números:
Em cada 1 milhão de vacinas administradas, foram relatados 4 casos de coágulos sanguíneos.
Em cada 1 milhão de mulheres que tomam a pílula, foram relatados entre 500 a 1200 casos de coágulos sanguíneos.
Em cada 1 milhão de fumadores, foram relatados 1763 casos de coágulos sanguíneos.
Em cada 1 milhão de testes feitos, foram relatados 165 mil casos de infeção por COVID-19.
Vendo assim, olhando somente para os números, parece-me claro que o risco da vacina é extremamente baixo, comparado com outros riscos que aceitamos diariamente.
Agora, olhemos para os números da vacina da Johnson & Johnson, que levaram a uma pausa na sua administração:
Em 6,8 milhões de doses de vacina administradas, foram detectados 6 casos de coágulos sanguíneos no cérebro. Uma das pessoas morreu devido a isso.
Ou seja:
Em cada 7 milhões de doses, morreu uma pessoa.
Em cada 1 milhão de doses, 1 pessoa teve coágulos sanguíneos no cérebro.
Ou, vendo de outra forma:
1 morte por cada 7 milhões de doses de vacina da J & J (que se toma somente 1 vez).
1 morte por cada 5 doentes COVID hospitalizados (na pior altura dos EUA).
Como os coágulos sanguíneos no cérebro apareceram somente em pessoas com idades entre 18 e 49 anos, vamos ver alguns números:
– 1 pessoa ficou com coágulos sanguíneos no cérebro, em cada 1 milhão de vacinações.
– 1810 pessoas morreram em cada 1 milhão de pacientes hospitalizados com COVID-19.
Como os coágulos sanguíneos no cérebro apareceram somente em mulheres com idades entre 18 e 49 anos, então vamos ver alguns números:
– 1 jovem mulher ficou com coágulos sanguíneos no cérebro, em cada 200 mil vacinações.
– 1 jovem mulher faleceu de COVID-19, em cada 6 mil pacientes de COVID-19.
Estes números são respeitantes aos EUA (dados na CNN), mas devem ser semelhantes por todo o mundo.
É verdade que a FDA recomendou a pausa temporária na administração da vacina da Johnson & Johnson por uma questão de excesso de zelo (“abundância de precaução”, como disseram).
Mas os números são claros: os riscos das vacinas são extremamente reduzidos. As vacinas são bastante seguras.
E como os raros coágulos sanguíneos no cérebro têm aparecido somente em mulheres com idades entre 18 e 49 anos, então, como precaução, a vacina pode dar-se somente a pessoas com mais de 50 anos.
Note-se que ainda nem sequer se sabe se a causa dos coágulos sanguíneos no cérebro são as vacinas. Podem ser ou podem não ser.
Numa população de milhões de pessoas, naturalmente algumas dessas pessoas vão desenvolver coágulos sanguíneos no cérebro, mesmo que nunca tenham sido vacinadas.
Notem igualmente que nada do que fazemos diariamente é 100% seguro.
O simples ato de respirarmos ou de falarmos ou de comermos, pode levar a que fiquemos entalados/engasgados com comida e possamos morrer por sufocamento. Isto são coisas que acontecem. Num número reduzido de pessoas. E não é por isso que devemos deixar de comer.
Por isso é que eu acho que a comunicação de ciência nestes casos dos riscos das vacinas está a ser mal gerida. A problemática que se criou, a percepção pública que se produziu, nada tem a ver com os reduzidos riscos reais na toma das vacinas.
5 comentários
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AstraZeneca e coágulos sanguíneos:
https://www.astropt.org/2021/04/20/astrazeneca-e-coagulos-sanguineos/
O problema que informações tem que ser emitida por igual, filtrar boas e más é perigoso para a lisura na credibilidade.
O combate a desinformação tem que ser de outra forma.
Concordo que o risco de tomar a vacina da AstraZeneca é baixíssimo, mesmo dando um desconto aos números apresentados.
O que me parece errado é comparar essa vacina com outras situações ou medicamentos. Ou mesmo comparar com a recusa vacinar-se.
Deve-se é comparar essa vacina com as outras disponíveis no mercado (aquilo que em economês chamamos de “custo de oportunidade”). E, aparentemente, as outras são mais seguras e eficazes.
Author
True. Mas para isso é preciso tempo (para se produzir as outras em quantidade suficiente). Enquanto se espera que as outras sejam produzidas em quantidade suficiente, vão sendo hospitalizadas e vão morrendo pessoas que se fossem vacinadas pela Astrazeneca não morreriam. Daí, para já, a vacina da Astrazeneca ser positiva.
Daqui por 2 anos (por exemplo), concordo que já ninguém vai andar a ser vacinado com esta versão da vacina da Astrazeneca.
Mas para já, é o que há. E é melhor que não tomar 😉
“O que me parece errado é comparar essa vacina com outras situações ou medicamentos. Ou mesmo comparar com a recusa vacinar-se” – ué, porque seria errado comparar o fato de que se você fumar ou não tomar a vacina, entre outros, é mais provável de desenvolver um coágulo do que pela vacina?