No dia 17 de Dezembro de 1903, os irmãos Wright fizeram história: conseguiram voar seis quilómetros com uma aeronave inventada, produzida e pilotada por eles! Como é que conseguiram tal feito? Na altura ainda não existia uma explicação científica para tal proeza. Para criar aeronaves mais fiáveis, robustas, rápidas e economicamente rentáveis, que permitissem o transporte de pessoas e cargas volumosas e pesadas, era necessário compreender bem toda a física envolvida. Em 1916, Albert Einstein publicou um artigo sobre o que permite aos aviões voar. Como motivação, escreveu que “há muita obscuridade em torno destas questões”, isto é, em torno dos princípios físicos envolvidos no voar de aeronaves. Acrescentou ainda que “na verdade, devo confessar que nunca encontrei uma resposta simples para elas, mesmo na literatura especializada.” Nesse artigo, Einstein propôs uma explicação com base no Princípio de Bernoulli. Em 1917, Einstein projectou uma asa de avião (um aerofólio) e facultou-a à LVG (Luftverkehrsgesellschaft), um fabricante de aeronaves alemão. A aeronave foi produzida, mas o piloto de teste queixou-se que o avião parecia voar como uma pata prenhe (“a pregnant duck“). Em que é que teria falhado Einstein? Será que o Princípio de Bernoulli pode de facto explicar o voar de um avião? Em que é que consiste esse princípio?
Em 1954, Einstein qualificou a sua digressão em aerodinâmica como tendo sido uma “loucura juvenil” (“youthful folly“). Porém, Einstein não precisa de se sentir mal pelo seu fiasco: ainda hoje em dia não há consenso no que toca a explicar como é que os aviões voam! Para aqueles que estudaram aerodinâmica, poderá parecer que acabei de proferir uma heresia. “É claro que há consenso”, dirão, “trata-se de resolver as equações de Navier-Stokes!” Uma equação, porém, não é uma explicação. Em particular quando as equações são muito complexas, como é o caso destas. Como referi no artigo Os Problemas do Milénio, resolver estas equações é um problema em aberto cuja solução vale um milhão de dólares. Não obstante, é possível analisar estas equações de forma aproximada recorrendo ao poder de cálculo dos computadores, o que por sua vez permite simular o voo de aeronaves e com isso projectar a melhor forma de as construir. Assim, pode-se dizer que existe consenso nos aspectos técnicos da questão, mas não na interpretação conceptual da mesma [1]. Por outras palavras, digamos que os matemáticos, físicos e engenheiros concordam nos números, mas não numa forma de explicar esses números a pessoas leigas no assunto.
Um ponto é claro: a força da gravidade “puxa” o avião para baixo, pelo que uma outra força tem que o “empurrar” para cima para que o avião possa voar.
A explicação mais popular para explicar a sustentação de um avião tem por base o Princípio de Bernoulli, tal como Einstein propôs. O Princípio (ou Teorema, ou Lei) de Bernoulli foi publicado em 1738 pelo matemático suíço Daniel Bernoulli (1700-1782), no seu tratado “Hidrodinâmica“. A Lei de Bernoulli afirma que a pressão de um fluído diminui quando a sua velocidade aumenta (e, da mesma forma, a pressão aumenta, quando a velocidade do fluído diminui). Como o ar se comporta como um fluído, a lei é aplicável ao ar. Aqueles que sabem um pouco de Física poderão estar à espera que eu aqui refira algumas das supostas experiências que podemos fazer para demonstrar o princípio, como seja o soprar entre duas folhas, o que faz com que as folhas se atraiam. Na verdade, o princípio não é aplicável a esta situação. Infelizmente, há muitos livros, professores universitários, aulas no YouTube, etc., errados!
Quase tudo o que é dito neste vídeo está errado! As demonstrações são giras, mas estão relacionadas com outros fenómenos físicos. A relação com o voar do avião também não é tão simples quanto o que é explicado no vídeo, como iremos ver mais abaixo.
Qual a relação entre a Lei de Bernoulli e o voar do avião? A ideia é que a força de sustentação resulta de uma diferença de pressões entre a parte de cima e a parte de baixo das asas do avião e que essa diferença de pressão é consequência das asas terem uma curvatura que faz com que o ar passe com maior velocidade por cima das asas, do que por baixo (onde a asa é plana). Menor velocidade por baixo das asas, significa maior pressão, o que por sua vez resulta numa força que impele o avião para cima.
O problema nesta explicação está no facto dela não descrever o porquê de o ar ter maior velocidade por cima da asa. Porque é que a curvatura da asa “força” o ar a andar mais depressa por cima dela?
Mais ainda, como é que é então possível fazer acrobacias como a que a foto abaixo ilustra?
Na explicação clássica mostram-se figuras como esta:
A figura de cima pode parecer indicar que duas partículas de ar que são “separadas” pela asa de um avião voltam-se a reunir depois da asa passar por elas. Isto implica que a partícula de cima tenha que “andar” mais depressa para voltar a ver a sua amiga de baixo, visto que tem que percorrer uma distância maior. Esta noção está errada – as partículas não têm que se voltar a reunir! De facto, o ar que passa por cima da asa movimenta-se em geral muito mais depressa que o ar que passa por baixo, pelo que a partícula de cima facilmente ultrapassaria a partícula de baixo.
Note-se que o Princípio de Bernoulli é verdadeiro e aplicável à questão de como os aviões voam. O problema está apenas em não ser uma explicação completa sobre o fenómeno de sustentação. O princípio não nos diz como é que de facto se gera menor pressão por cima das asas. Por um lado, não explica o porquê do ar se movimentar com maior velocidade por cima das asas. Por outro lado, o princípio também nada nos diz sobre como é que maior velocidade do ar resulta em menor pressão.
Que outros conceitos físicos devemos então invocar para explicar o voar do avião?
Na dúvida, em questões de dinâmica de corpos, é quase sempre boa ideia pensar nas leis de Newton. Neste caso, é conveniente recordarmos a terceira Lei de Newton, o Princípio da Acção-Reacção. Qualquer acção provoca uma reacção em termos de forças físicas. No caso do avião, para ele voar para cima, algo tem que ser “empurrado” para baixo: o ar. Esta explicação vem por norma acompanhada do conceito de “ângulo de ataque”: as asas têm que “atacar” o ar de tal forma que o empurrem para baixo, de forma a que assim o avião seja empurrado para cima. Deste ponto de vista, um avião pode voar virado ao contrário, desde que o ângulo de ataque seja adequado.
Uma forma de verificarem o efeito em causa é colocarem a mão de fora da janela quando andarem de carro. Experimentem inclinar ligeiramente a mão contra o vento, tal como na figura de cima (isto é, com a palma virada para baixo e com uma ligeira inclinação contra o vento). Dessa forma, a mão estará a forçar o ar que lhe bate a ir para baixo, pelo que a mão tende a ir para cima.
Infelizmente, esta explicação também não nos diz nada sobre o facto de existir menor pressão do lado de cima das asas.
Ambas as explicações estão correctas, contudo ambas estão incompletas. Note-se que isto não significa que os Princípios de Bernoulli e de Newton estejam incompletos. Acontece é que no caso da sustentação do avião há mais Física envolvida. (Como é claro, nem Bernoulli nem Newton tiveram intenções de explicar o voar de um avião, até porque viveram séculos antes da sua invenção.)
Actualmente há outras explicações mais complexas que tentam descrever a sustentação de forma mais completa. Ainda assim, para já não existe nenhuma explicação não-técnica aceite por todos. De facto, o fenómeno poderá ser demasiado complexo para que seja possível reduzi-lo a uma exposição simples e concisa.
Recapitulando: o avião é projectado e pilotado de tal forma que garanta que a pressão por cima das asas seja inferior à pressão de baixo delas e, por outro lado, de tal forma a que o fluxo de ar que é atravessado seja empurrado para baixo.
É uma explicação completa? Não, mas sempre é melhor que a facultada por Einstein!
Bibliografia:
- [1] “The Enigma of Aerodynamic Lift” in Scientific American 322, 2, 44-51 (February 2020) doi:10.1038/scientificamerican0220-44
- Aula aberta do Prof. Keith Devlin (ver no YouTube): “General Overview and the Development of Numbers”, ~min. 29-37
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