O título denuncia desde logo que este artigo será diferente dos artigos que tenho publicado no AstroPT. Neste artigo e nos seguintes irei falar sobre a investigação que realizei e publiquei até hoje. O objectivo será clarificar o que um investigador/cientista faz (ou pode fazer) usando o meu exemplo para o ilustrar. É claro que não irei explicar em detalhe a componente técnica, mas irei tentar dar uma imagem genérica daquilo que fiz. Irei mencionar a motivação, esclarecer alguns conceitos e indicar parte da importância dos resultados. Ficará muito por dizer, pelo que os mais curiosos poderão interrogar-me usando os comentários.
Começo esta secção com o artigo entitulado “Critical phenomena and noise-induced phase transitions in neuronal networks” [1], que em português se traduz para “Fenómenos críticos e transições de fase induzidas por ruído em redes neuronais” que publiquei em 2014 em co-autoria com KyoungEun Lee, José F. F. Mendes e Alexander Goltsev. O artigo foi publicado na revista científica Physical Review E, uma revista com revisão por pares (o que significa que o artigo foi revisto, criticado e aceite por outros especialistas na área). O estudo em causa foi desenvolvido durante o meu doutoramento em Física na Universidade de Aveiro.
O que significa o título?
O título contém quatro conceitos: fenómenos críticos, transições de fase, ruído e redes neuronais.
Já aqui falei de transições de fase. Por exemplo, há certos materiais que, quando arrefecidos, têm propriedades supercondutoras. A transição de um estado “normal” para um estado supercondutor é uma transição de fase. A transição mais comum que observamos no dia-a-dia é provavelmente a ebulição: se aquecermos a água acima de 100ºC, a água transita da “fase” líquida para a “fase” gasosa. De forma mais genérica, uma transição de fase corresponde a uma mudança súbita de organização de um sistema de “componentes” que interagem entre si, onde diferentes organizações podem dar diferentes propriedades ao sistema.
Fenómenos críticos são processos que podem ocorrer quando o sistema está próximo de sofrer uma transição de fase. Em certas circunstâncias, os fenómenos críticos podem ser inevitáveis e podem ser usados para antecipar a ocorrência iminente da transição. Como se pode imaginar, a possibilidade de poder prever algo antes desse algo acontecer pode ser muito útil. Por exemplo, se um terramoto fosse consequência de uma transição de fase (digamos que seria a transição entre a fase “terra quieta” e a fase “terra a tremer), poder-se-ia tentar encontrar fenómenos críticos que pudessem assinalar a transição iminente antes desta ocorrer, o que poderia ser usado para tomar medidas de prevenção. Não obstante estar a simplificar muito a questão, a hipótese já foi considerada.
Também já aqui falei de ruído. Associamos ruído com barulho e/ou sons indesejáveis. Por exemplo, um rádio mal sintonizado produz ruído. Em Ciência, o ruído tem um significado mais preciso e mais abrangente. O ruído é um sinal, não necessariamente sonoro, que é aleatório e que por isso não contém informação. Uma televisão não sintonizada pode produzir “fagulhas”, o que é de certa forma equivalente ao ruído do rádio, mas neste caso é um ruído que podemos ver. Em sistemas biológicos, no funcionamento de células, por exemplo, o ruído está sempre presente, em parte como resultado da imensa complexidade da bioquímica envolvida. Neste caso, podemos usar o termo ruído para nos referirmos à forma aparentemente aleatória (ou probabilística) com que dados processos bioquímicos acontecem. Mais abaixo irei dar um exemplo no âmbito do artigo em discussão.
Finalmente, o que são redes neuronais? São redes compostas por neurónios. Já aqui falei de redes. Uma rede é um conjunto de componentes ligados entre si. Por exemplo, a internet é uma rede de computadores: os componentes são os computadores, as ligações são os cabos de fibra óptica e cobre que ligam os computadores entre si. Uma rede neuronal é um conjunto de células neuronais, os neurónios (as células do cérebro), ligados entre si através de “sinapses”. Trata-se de um objecto de estudo interessante porque compreender a dinâmica de uma rede neuronal poderá dar-nos bases para começarmos a entender o funcionamento do cérebro.
Colocando tudo em conjunto: o artigo é sobre transições de fase induzidas por ruído “biológico” e respectivos fenómenos críticos em redes neuronais. Dada a dificuldade em estudar estes fenómenos subentende-se que o artigo é teórico. Isto é, um título alternativo seria: fenómenos críticos e transições de fase num modelo de redes neuronais.
O que é que fizemos?
O estudo consistiu em desenvolver um modelo matemático de uma rede neuronal e estudar as suas propriedades dinâmicas emergentes. No nosso modelo definimos que um neurónio ou está activo quando emite sinais (electroquímicos) para os neurónios com os quais faz ligação, ou está inactivo quando não emite qualquer sinal. Por norma um neurónio fica activo se receber sinais suficientes dos seus vizinhos. Ou seja, é como se um neurónio fosse uma barragem que recebe o fluxo de vários rios. Se o fluxo for maior que um dado limiar, a “barragem” do neurónio é aberta, fazendo com que este envie também um fluxo para outros neurónios aos quais este esteja ligado. Se o fluxo diminuir, a barragem volta a ser fechada. Assim, existe uma dinâmica de activação e desactivação de neurónios. Esta dinâmica é também condicionada por ruído, ou seja, sinais aleatórios que poderão resultar do funcionamento probabilístico dos neurónios, ou de outros processos externos que poderão tentar activar ou desactivar neurónios.
Depois de definirmos um dado conjunto de regras que estabelecem a forma simplificada com que queremos representar o funcionamento de um conjunto de neurónios, assumimos ainda que os neurónios estão ligados entre si de forma aleatória. Muitas das nossas suposições estão erradas, mas isso não impede que possamos extrair conhecimento do nosso modelo. Recordo as palavras do matemático britânico George Box (1919-2013):
“All models are wrong, but some are useful.”
Ou seja: “todos os modelos estão errados, mas alguns são úteis”. De facto, em Ciência teórica é muito comum estabelecer modelos que se sabe à partida estarem errados (ou não completamente correctos). Ainda assim, do seu estudo poderemos extrair algum tipo de informação útil. Ou não. Trata-se de uma “experiência teórica”. Tal como quando se desenvolve um novo medicamento se pode descobrir que o mesmo não é eficaz, também um modelo matemático pode não ser útil.
Poder-se-á perguntar: porquê introduzir elementos errados no modelo? Porque não tentar defini-lo só com informação correcta? Por vezes é isso que se tenta fazer, mas é comum estarmos limitados pelo conhecimento incompleto de que dispomos. Por outro lado, a introdução de demasiados detalhes pode tornar o modelo demasiado difícil de analisar, o que faria com que este fosse inútil.
Estudámos então as propriedades do nosso modelo de dinâmica de uma rede neuronal para determinar se era útil ou não. De forma muito resumida, o que fizemos foi procurar pelos vários estados possíveis de dinâmica neuronal e determinar em que condições é que estes existem na rede. Por exemplo, se o ruído neuronal tiver um carácter “activador” e se for muito elevado, pode conduzir à activação de todos os neurónios. Em contraste, se for muito reduzido, os neurónios podem estar todos inactivos. Finalmente, para valores intermédios podemos encontrar estados de oscilação sincronizada entre neurónios, em que estes se activam e desactivam uns aos outros de forma ordenada. Para além disto, estudámos ainda o que sucede quando a dinâmica transita de um estado para outro e procurámos os tais fenómenos críticos junto das transições.
Porque é que o fizemos?
Partilho convosco um “segredo” que pode parecer um pouco chocante: a motivação de estudos teóricos é muitas vezes definido a posteriori. Isto é, muitos estudos teóricos começam sem uma motivação clara para além de que o problema em causa parece ser interessante de um ponto de vista abstracto para os seus autores. Como referi em cima, a “utilidade” é algo que pode ou não emergir quando estudamos um modelo. Isto significa que antes desta utilidade emergir, a motivação é bastante vaga. Foi o caso neste estudo. De forma genérica queríamos tentar perceber melhor a forma como uma rede neuronal se pode comportar. Será que o nosso modelo conseguiria descrever algum fenómeno biológico conhecido? Será que poderíamos usá-lo para estabelecer novas hipóteses experimentais? Talvez sim, talvez não. Neste caso, a resposta foi sim.
O que é que descobrimos?
Entre outras coisas, descobrimos que o nosso modelo era capaz de descrever o fenómeno de “avalanches neuronais”. Trata-se de um processo através do qual a activação de um neurónio pode conduzir à activação de um vasto conjunto de neurónios, como se houvesse um efeito de bola de neve. Isto é, um neurónio activa por exemplo dois neurónios, esses dois activam quatro, quatro activam oito… e rapidamente temos um enorme grupo de neurónios activos. Esta avalanche de activação neuronal já tinha sido observada em experiências com redes neuronais reais. O facto do nosso modelo o conseguir descrever abre a oportunidade de colocar novas questões e hipóteses sobre estas avalanches.
Uma outra coisa que descobrimos é que o modelo conseguia representar um tipo de actividade neuronal que se assemelhava a actividade que ocorre em cérebros epilépticos. Consequentemente, o nosso modelo permitiu-nos especular que a transição de uma “actividade neuronal normal” para uma “actividade neuronal epiléptica” era uma transição de fase acompanhada por determinados fenómenos críticos. A relevância disto é que com base no nosso modelo ficámos com uma nova perspectiva sobre a forma como uma crise epiléptica pode surgir e como é que a podemos potencialmente antecipar. Convém, porém, colocar água na fervura e esclarecer que não descobrimos uma forma definitiva de antecipar crises epilépticas. Tratou-se apenas de uma contribuição para a imensa investigação que tem sido feita nessa área que pode, ou não, vir a ser útil depois de bem testada experimentalmente.
Desde que foi publicado, o artigo já foi citado 24 vezes (de acordo com o Google Scholar). Isto significa que 24 outros estudos mencionaram este artigo.
Para os mais interessados, aqui fica o artigo original:
Últimos comentários