Em 2017 publiquei o meu primeiro artigo devoto à epilepsia. Tratou-se do fruto do trabalho que realizara até então na Universidade de Exeter (Reino Unido), naquela que foi a minha primeira aventura pós-doutoral. O artigo, An optimal strategy for epilepsy surgery: Disruption of the rich-club?, foi publicado em co-autoria com M.P. Richardson, E. Abela, C. Rummel, K. Schindler, M. Goodfellow e J.R. Terry na revista científica PLoS Computational Biology, uma revista com revisão por pares. Este trata-se por ventura do artigo mais importante que publiquei na minha vida académica, tanto mais não seja por ter o maior número de citações (>60). Comecemos mais uma vez por entender o título.
O que significa o título?
A epilepsia é uma desordem neurológica que afecta cerca de uma pessoa em cada 100. O ser “neurológica” significa que afecta os neurónios, as células que compõem o nosso cérebro. O que acontece é que, em epilepsia, os neurónios têm tendência a sincronizar a sua actividade eléctrica de forma anormal, fazendo com que se criem tempestades eléctricas nos cérebros de quem sofre desta desordem. Estas “tempestades” são chamadas de crises epilépticas e podem manifestar-se em convulsões incontroláveis, em perda parcial ou completa da consciência e não só. A frequência com que estas crises ocorrem varia de paciente para paciente. A imprevisibilidade de ocorrência das crises é muitas vezes um dos maiores tormentos desta condição, pois pode afectar o dia-a-dia da pessoa, impedindo-a, por exemplo, de fazer tarefas que exijam atenção ininterrupta, como seja conduzir um automóvel.
A primeira opção de tratamento consiste em tomar medicação anti-epiléptica. Infelizmente, em cerca de 30% dos casos a medicação não é suficiente para controlar as crises epilépticas. Nestes casos procuram-se opções alternativas, sendo uma delas a cirurgia para epilepsia. O paradigma consiste em tentar mapear o cérebro de forma a encontrar a região cerebral patológica que é responsável pelas crises epilépticas, seguindo-se a sua remoção. (Sim, leu bem: abre-se o crânio e extrai-se uma parte do tecido cerebral.) Porém, cerca de metade destas cirurgias não são bem sucedidas e os pacientes continuam a experienciar crises epilépticas. O problema está muitas vezes na dificuldade em distinguir tecido cerebral patológico do saudável. Assim, a investigação científica actual nesta área pretende encontrar novos métodos para determinar o que estas cirurgias devem remover para que estas sejam mais bem sucedidas no tratamento da epilepsia.
O que é o rich-club? Já aqui falei no clube de ricos, um conceito da Teoria de Redes. Recordo que uma rede (ou grafo) é um conjunto de pontos ligados entre si. Um rich-club é um tipo de “componente” que pode ou não existir numa rede e que consiste num conjunto de pontos altamente ligados entre si, muito mais que todos os outros pontos na rede e muito mais do que seria expectável num cenário de ligações ao acaso. Qual a relação disto com o cérebro? Ora, o cérebro pode ser entendido como sendo uma rede, onde os pontos correspondem a regiões cerebrais e as ligações correspondem à comunicação que existe entre regiões cerebrais através de células neuronais. Também neste tipo de rede cerebral se podem definir rich-clubs, ou seja, regiões cerebrais com muitas ligações entre si.
Assim, o que o título pretende transmitir é a hipótese de que as cirurgias para epilepsia podem ser optimizadas caso se identifique e se removam regiões cerebrais com elevada conectividade que estejam envolvidas na geração de crises epilépticas.
O que é que fizemos?
A hipótese enunciada no título não caiu do céu. Primeiro estabelecemos um novo modelo matemático que nos permitisse estudar as transições de actividade neuronal “normal” para actividade altamente sincronizada, semelhante àquela que é observável durante crises epilépticas.
O que fizemos foi partir de um modelo já existente na literatura e reduzi-lo apenas ao mecanismo matemático essencial que descrevia a transição. A razão para definir este novo modelo ao invés de usar o já existente deveu-se ao facto de que pretendíamos um modelo suficientemente simples que nos permitisse estudar muitos tipos de cenários diferentes: muitos tipos diferentes de redes. Estávamos interessados num modelo que nos permitisse compreender a origem estrutural nas redes cerebrais que conduz a crises epilépticas. Para analisar esta questão precisávamos de estudar imensas redes diferentes e, para isso, precisávamos de um modelo cuja simulação numérica num computador fosse suficientemente rápida para que pudéssemos obter resultados num espaço de tempo razoável.
Assim, além de estabelecermos um novo modelo matemático, também o usámos para estudar uma larga variedade de redes “artificiais”. Com este estudo conseguimos estabelecer que uma rede com os tais rich-clubs era particularmente propícia à geração de crises epilépticas.
Até aqui, todos os nossos resultados eram “meramente matemáticos” (e, por isso, não necessariamente aplicáveis à realidade). Será que o modelo matemático era confiável? Para responder a esta questão analisámos dados clínicos de electroencefalografia intracraniana de pessoas que tinham recebido cirurgia para epilepsia.
Como descrevi aqui, a electroencefalografia permite medir os sinais eléctricos produzidos pelo tecido cerebral. No caso intracraniano, os eléctrodos que medem os sinais eléctricos são inseridos dentro do crânio e, com isso, obtêm-se sinais ainda mais precisos. Com eles é possível definir redes cerebrais funcionais, onde os tais pontos da rede correspondem aos pontos onde foram colocados os eléctrodos no cérebro, enquanto que as ligações entre as regiões mapeadas podem ser inferidas através do estudo de correlações estatísticas entre os sinais medidos. Isto é, se, por exemplo, duas regiões cerebrais tiverem sinais eléctricos muito semelhantes ao longo do tempo, então assume-se que existe uma forte comunicação funcional entre as regiões e, por isso, existe uma “ligação” entre as regiões. Ou seja, uma ligação na rede. Assim, do estudo das relações estatísticas entre os sinais medidos foi-nos possível inferir redes cerebrais para cada paciente.
O que é que descobrimos?
Primeiro descobrimos que as redes cerebrais de cada paciente possuíam rich-clubs. De seguida quisemos comparar a localização destes rich-clubs com o tecido neuronal que houvera sido removido na cirurgia de cada paciente. O que descobrimos com esta análise é que pacientes que receberam cirurgias que removeram uma maior porção dos rich-clubs presentes nas suas redes cerebrais ficaram melhores com o tratamento cirúrgico! Esta observação estava, portanto, de acordo com a hipótese que o nosso modelo matemático nos permitira colocar. Por outras palavras, os nossos resultados sugeriam que os cirurgiões deviam no futuro tentar identificar os rich-clubs nas redes cerebrais dos seus pacientes e remover parte deste de forma a que as cirurgias fossem mais bem sucedidas como tratamento para a epilepsia.
Podia acabar nesta nota positiva, mas o meu cepticismo académico força-me a deitar alguma água fria na fervura. É claro que com este artigo não resolvemos a questão de forma definitiva. Em particular, nenhum cirurgião deve considerar começar a operar os seus pacientes com base no que escrevi em cima. Porque não? Porque o estudo foi baseado nos dados clínicos de apenas 16 pacientes e foi algo exploratório na sua natureza. Seria necessário mais estudos independentes, maior número de pacientes e, finalmente, um ou vários ensaios clínicos controlados. Felizmente, isto é precisamente o que um outro grupo de investigadores está a fazer neste momento, usando estas e outras ideias semelhantes [1].
Desde que foi publicado, este artigo foi citado 61 vezes até agora (dados de acordo com o Google Scholar). Como é claro, haveria muito mais para detalhar e explicar. Quem quiser pode colocar questões nos comentários. Para os mais interessados, aqui fica o artigo original:
Lopes, M. A., Richardson, M. P., Abela, E., Rummel, C., Schindler, K., Goodfellow, M., & Terry, J. R. (2017). An optimal strategy for epilepsy surgery: Disruption of the rich-club?. PLoS computational biology, 13(8), e1005637.
[1] Notícia no Público (para quem tiver subscrição). Ou em inglês aqui.
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