Em 2018 publiquei o meu segundo artigo sobre modelos matemáticos para prever o efeito de cirurgias em epilepsia. Tal como o primeiro artigo neste tema de que já aqui falei, o trabalho foi feito na Universidade de Exeter (Reino Unido), em colaboração com M.P. Richardson, E. Abela, C. Rummel, K. Schindler, M. Goodfellow e J.R. Terry. Este artigo foi intitulado Elevated Ictal Brain Network Ictogenicity Enables Prediction of Optimal Seizure Control e foi publicado na revista científica Frontiers in Neurology, uma revista com revisão por pares. O título pode ser traduzido para algo como: elevada propensão epiléptica de redes cerebrais durante crises epilépticas permite optimizar o prever do controlo de crises epilépticas. Ficou confuso? É natural!
O que significa o título?
Ao contrário de outros artigos de que já aqui falei, a dificuldade deste título não está tanto nas palavras em si, mas no que elas significam juntas. A “propensão epiléptica de redes cerebrais” (BNI, do inglês Brain Network Ictogenicity) refere-se a uma medida matemática que pretende quantificar o quão propenso pode um cérebro estar para produzir actividade epiléptica. (Recorde este artigo onde dou algumas informações básicas sobre epilepsia). Esta medida matemática avalia redes cerebrais funcionais, as quais variam ao longo do tempo de acordo com a actividade cerebral. (No mesmo artigo supracitado descrevo o que são redes cerebrais funcionais.) Por outro lado, com o “controlo de crises epilépticas” referimo-nos à possibilidade de mitigar ou curar epilepsia com cirurgia. Assim, o título descreve a descoberta central deste artigo: observámos uma correlação entre o BNI aumentar durante crises epilépticas e a nossa capacidade de prever se a cirurgia que os respectivos pacientes receberam foi bem ou mal sucedida. Ainda confuso? Analisemos em maior detalhe o que fizemos e o que descobrimos.
O que é que fizemos?
Neste artigo considerámos electroencefalogramas intracranianos de 16 pacientes com epilepsia que receberam cirurgia. A partir da actividade eléctrica medida com os electroencefalogramas produzimos redes cerebrais funcionais. De seguida usámos um modelo matemático para simular actividade neuronal nessas redes cerebrais extraídas dos dados de cada paciente. Com este modelo conseguimos recriar actividade cerebral epiléptica e não-epiléptica, sendo que a ideia era caracterizar a propensão de cada rede cerebral inferida de gerar crises epilépticas. Por outras palavras, ao simularmos actividade cerebral nas redes cerebrais de cada indivíduo a ideia era obter uma medição do quão propícia cada rede tinha estado de produzir crises epilépticas: o BNI. Maior actividade epiléptica nas simulações corresponderia a maior propensão da rede cerebral de de facto produzir crises epilépticas.
Como a actividade cerebral vai variando ao longo do tempo, isso também se reflecte em variações dos sinais medidos nos electroencefalogramas, o que por sua vez conduz a alterações nas redes cerebrais. Como os electroencefalogramas que tínhamos continham crises epilépticas, um teste natural de se fazer era verificar se o BNI aumentava nas redes cerebrais inferidas durante as crises epilépticas em relação às restantes obtidas fora de crises. Como é claro, a expectativa é que de facto o BNI aumentasse durante as crises uma vez que para estas crises ocorrerem deveria de facto haver uma maior propensão da rede cerebral de gerar a crise. Assim, podemos encarar este procedimento como uma forma de validar o modelo para cada paciente em particular.
Além disto, com o modelo matemático descrito podemos fazer outra coisa mais interessante: simular as próprias cirurgias. Isto é, remover da rede cerebral o equivalente ao que foi removido na cirurgia do paciente e simular a actividade neuronal resultante. Por outras palavras, usámos o nosso modelo matemático para recriar as cirurgias e prever quais delas é que teriam maiores chances de sucesso: uma cirurgia bem sucedida no modelo seria uma na qual não observaríamos actividade epiléptica nas nossas simulações.
O que é que descobrimos?
Descobrimos que em todos os pacientes em que observámos um aumento do BNI durante as crises epilépticas (como esperado), o nosso modelo foi capaz de prever correctamente o resultado da cirurgia. Por outras palavras, o observar do aumentar de BNI durante as crises epilépticas funciona como que uma condição de garantia (validação) em como se pode confiar nas previsões do modelo quando usado para simular as cirurgias. Em suma, este artigo vem complementar o primeiro que publiquei nesta área, pois descreve condições que devem ser verificadas para que se possa confiar nas previsões do modelo.
Qual a importância de poder “prever” o resultado de uma cirurgia que já aconteceu? Naturalmente, o objectivo será no futuro usar estes modelos matemáticos antes de se realizar uma dada cirurgia de forma a informar os cirurgiões de que tipo de cirurgia terá maior probabilidade de sucesso para curar a epilepsia do paciente sob consideração.
Desde que foi publicado, este artigo foi citado 24 vezes até agora (dados de acordo com o Google Scholar). Para os mais interessados, aqui fica o artigo original:
Lopes, M. A., Richardson, M. P., Abela, E., Rummel, C., Schindler, K., Goodfellow, M., & Terry, J. R. (2018). Elevated ictal brain network ictogenicity enables prediction of optimal seizure control. Frontiers in neurology, 9, 98.
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