Popper, Einstein e Freud – CC(8)

Eis a oitava aula do Crash Course de Filosofia:

Esta aula fala-nos de um dos filósofos mais importantes do século XX, Karl Popper (1902-1994), autor de ideias que hoje parecem quase inquestionáveis, algo bastante incomum na História da Filosofia. Um dos seus contributos mais importantes foi o ter detalhado as condições necessárias para estabelecer o que é Ciência e o que não é. O que é conhecimento e o que é pseudociência, isto é, algo com a aparência de ser conhecimento, sem que de facto o seja. Para isto, os objectos principais de estudo de Popper foram as teorias de Einstein e de Freud, dois dos maiores génios do século XX.

Porque é que Popper chegou à conclusão que Einstein fazia Ciência, enquanto que Freud fazia pseudociência?

Quer Einstein quer Freud procuravam descobrir novos factos sobre a realidade em que vivemos. Einstein focou-se nas leis que governam o movimento dos corpos celestes (entre outras coisas), enquanto que Freud focou-se nos mecanismos psíquicos que ditam certas experiências psíquicas humanas. Einstein lidou com Física e Matemática, Freud lidou com Psiquiatria clínica e teórica (tendo criado a Psicanálise). Ambos procuravam novo conhecimento, novas verdades ocultas nos seus campos de investigação.

Popper notou uma diferença crucial entre as duas especialidades: as teorias de Einstein eram testáveis, enquanto que as de Freud não. Einstein previa que um eclipse solar poderia confirmar ou refutar a sua Teoria da Relatividade Geral. Freud previa que as nossas experiências da infância tinham uma grande influência na nossa personalidade adulta. Para Freud, era praticamente sempre possível reinterpretar qualquer tipo de histórico de pacientes para confirmar a sua teoria. A subjectividade inerente às suas teorias fazia com que fosse de facto impossível mostrar que as mesmas estavam erradas. Assim, Popper compreendeu que a falseabilidade de uma teoria era uma qualidade necessária para que esta pudesse ser considerada científica. Se uma dada teoria não pode ser testada nem refutada, então na verdade não nos está a dizer nada em que possamos confiar. Isto é, as teorias científicas têm que ser proibitivas: devem não só afirmar que a realidade é de uma dada forma, como também devem ser suficientemente concretas para afirmar que a realidade não é de outras formas. Se for, a teoria está errada.

Dito por outras palavras, Popper notou que a teoria de Einstein não era apenas retrospectiva, isto é, não servia apenas para “explicar” o passado. Com ela, era possível fazer previsões do que iria acontecer no futuro! Previsões que se verificassem erradas seriam uma forma de refutar a teoria. Em contraste, as teorias de Freud não permitiam prever nada com certezas e qualquer tipo de observação futura poderia ser considerada como “explicável”…

De forma mais genérica, a aula conta-nos que se costumava considerar que o método científico consistia em observar o mundo sem preconceitos. Popper, tal como outros filósofos modernos, reconheceram que essa definição não só é simplista, como é mesmo errada. É inevitável termos ideias pré-concebidas. A própria decisão de estudar um dado fenómeno resulta de ideias pré-concebidas. O pensar numa dada experiência para testar uma certa hipótese resulta em parte dessa mesma hipótese, o que significa que tendemos a ser parciais nas nossas análises. É impossível testar o desconhecido de forma completa precisamente porque é desconhecido. Estamos, por isso, condenados a fazer observações incompletas, parciais e baseadas em preconceitos. Não obstante, isto não significa que não possamos fazer progressos no desenvolver do conhecimento.

Sejamos cientistas ou não, é comum tentarmos descobrir novo conhecimento através das nossas observações: “este chá deve ter um poder calmante”. Segue-se a justificação: “ainda ontem bebi e senti-me mais calmo.” Isto trata-se de um exemplo de pseudociência (na sua forma mais básica), na medida em que fazemos uma observação e de seguida tentamos encontrar evidências que suportem a nossa observação. Para determinarmos se de facto estamos certos temos que procurar contra-exemplos. Temos que procurar formas que podem invalidar a nossa hipótese caso ela de facto esteja errada!

A pseudociência procura confirmar. A ciência procura refutar.

Uma teoria que tentámos mas que não conseguimos refutar é a melhor explicação que temos para um dado fenómeno. A confiança que temos numa teoria provém da sua robustez.

Por exemplo, um produtor de automóveis só poderá gabar-se de forma fidedigna sobre a segurança dos seus carros em caso de acidente se testar a segurança dos carros numa variedade de acidentes testáveis e mensuráveis. Os testes só têm valor caso fosse possível demonstrar com eles que de facto os carros não eram seguros para os seus automobilistas. Uma experiência só é qualificável de científica se for capaz de refutar a hipótese.

Em contraste, um produtor que usasse pseudociência para gabar a segurança dos seus automóveis poderia procurar exemplos de acidentes onde os automobilistas tinham tido “sorte” (omitindo de forma conveniente os acidentes trágicos).

Popper acrescentou ainda que não é possível verificar a veracidade de uma teoria científica. Mesmo que a teoria faça muitas previsões correctas e não haja evidências que coloquem em causa a teoria, isso não implica que a teoria seja verdadeira. Há sempre a possibilidade de que possamos pensar numa nova experiência que demonstre uma limitação da teoria.

Significa então que não podemos acreditar em nada? Não. É plausível acreditar no que parece ser mais provável com base em todo o conhecimento adquirido. Porém, deve ser uma crença provisória, passível de ser alterada assim que novas evidências o justifiquem.

“Um “lapso freudiano” é quando dizes uma coisa, mas querias dizer a tua mãe. Queria dizer “outra”.”
(O trocadilho só funciona bem em inglês.)

9 comentários

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  1. Uma discussão interessante no nosso Facebook sobre este post:
    https://www.facebook.com/astropt/posts/pfbid0xntZ6UaLAh8HyLt8cQn7PnSb9Z2Ko19kXkx3isdfAXAvfyMWeH3zPzdc6jaeYgjEl

      • Jonathan Malavolta on 18/02/2023 at 23:51
      • Responder

      Rapaz, orgulho em ver que um livro que li lá pela década de 1980, O Macaco Nu, ainda está a ter suas observações partilhadas. Salve Desmond!

  2. 3 coisas 😉

    1 – adorei o cartoon! 😀

    2 – para mim, como já afirmei, nestes assuntos, o supra-sumo é Lakatos. Mas logo a seguir está Popper 😉

    3 – a pseudociência, ao tentar justificar a observação, está a racionalizar.
    Enquanto Einstein raciocinava, Freud racionalizava 😉
    https://www.astropt.org/2021/10/09/raciocinar-vs-racionalizar/

    abraço!

    1. Por acaso não sabia que em português também se aplicava a diferença entre reasoning e rationalising. É o que dá raramente ler coisas em português. :p
      Mas sim, usa-se:
      https://pt.wikipedia.org/wiki/Racionaliza%C3%A7%C3%A3o_(psicologia)

      Abraço,
      Marinho

    • Paulo Figueira on 04/02/2023 at 18:50
    • Responder

    O Carlos está de volta. Esperamos muitos e bons posts nos próximos dias 🙂

    1. Sim, estou com um pouco mais de tempo atualmente. Ainda não muito, que dê para posts profundos, de análise científica. Mas vou colocando coisas que vou vendo na cultura pop, sendo que os posts científicos tenho-os todos em bookmark para indo pôr com tempo 😉

      Obrigado pela consideração 🙂

    • Jonathan Malavolta on 08/01/2023 at 23:14
    • Responder

    A minha dúvida é: Como faço para convencer alguma pessoa de que está diante de um farsante que aplica pseudociência ao invés de ciência? Posso me fartar de usar bons argumentos, provar as falácias ditas pelo tal farsante (que se auto-intitula o pica das galáxias em um dado assunto quando na verdade seu conhecimento é zero), provar que o mesmo não tem a formação que alega ter, não estudou onde alega ter estudado, não leciona na instituição onde diz lecionar (sequer leciona, na maioria das vezes), e mesmo assim os ingênuos continuam dando cada vez mais crédito ao dito farsante (mesmo que eu apresente evidências de que é um farsante) e geralmente me respondem com algo do tipo: “Você deveria estudar primeiro antes de falar do Doutor Fulano, Professor Beltrano, Mestre Ciclano” e por aí vai. Quando apresento vários certificados de conclusão de ensino técnico (até mesmo especialização a nível superior), com meu nome nestes e com dados de registro que os ingênuos podem facilmente checar na Internet, de novo os vejo defendendo o tal farsante com unhas e dentes, e de novo com a mesma sugestão: “Vai estudar antes de falar do Doutor Fulano.” E olha que já tenho uns 40 anos (aproximadamente; desde criança defendo Ciência e método científico, além de lógica e bom senso) na defesa da distinção entre Ciência e Pseudociência, do método científico e até mesmo em como se desmascara charlatães e suas respectivas argumentações falaciosas (às vezes tendenciosas também).

    1. Olá Jonathan,

      Assumindo que quem quer convencer se guia por razões lógicas (em muitos casos assim não é, pelo que nem vale a pena tentar convencer), diria que não deve colocar a questão nos certificados, porque qualquer doutor ou professor da melhor universidade estará apto a dizer disparates. O que se deve fazer é apresentar as evidências que mostram que a pessoa está errada e que você está certo. Aceite apenas argumentos com base em evidências científicas validadas. Se o interlocutor não aceitar estas condições de discussão, então a questão passa para o fazer compreender de que essas são as condições necessárias para se ter uma discussão válida.

      Abraço,
      Marinho

    2. Oi Jonathan,

      Essa é uma discussão interessante, em que já se publicaram vários livros e em que existem cadeiras universitárias onde se discutem esses assuntos.

      Até onde sei, não existe uma resposta clara e cabal.

      Como pode ver pelos meus comentários ao longo dos anos, eu próprio fui passando por várias fases.

      O que se sabe (no geral): existem dois tipos de pessoas que discutem consigo e negam as evidências: aqueles que são crentes fanáticos no que dizem, e esses não é possível convencer através da lógica e das evidências (porque eles não dão valor a isso); e aqueles que estão “on the fence”, porque leram umas coisas na net, e estão enganados sobre o assunto mas estão ligeiramente abertos a mudarem de opinião, e esses é possível, no mínimo, colocar-lhes a dúvida que o conhecimento é outro (e não aquele que eles pensam).

      Vou dar-lhe um exemplo pessoal: sempre que alguém da minha família (ou seja, muito chegado a mim) diz “Graças a Deus”, porque, sei lá, uma criança foi salva com vida de um poço, eu digo que foi graças aos bombeiros. E explico que se Deus é todo poderoso, então foi ele que colocou a criança no poço, ou no mínimo, poderia ter prevenido isso, em vez de fazer a criança passar por aquele tormento (a não ser que seja um deus sádico e torturador). Parece-me que tudo o que eu digo tem lógica. A resposta que me dão é: “Pára de ser herege! Não digas essas coisas contra Deus.” E pronto… eu continuo a dizê-las só para me meter com eles, mas não espero convencer ninguém de que a forma como eles pensam em Deus é paradoxal. 😉

      abraço

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