Na nona aula do Crash Course de Filosofia debruçamo-nos sobre Deus:
A aula começa com uma distinção entre a Filosofia da Religião e a Teologia. Não são a mesma coisa porque a Teologia assume a existência de Deus (e foca-se nas consequências), enquanto que a Filosofia da Religião discute essa suposição e tenta perceber se de facto existe Deus ou não (e não só).
Um crente poderá achar a questão da existência de Deus idiota: “é claro que existe, é óbvio”. Sim? Porquê? Será possível demonstrar a existência desse ser todo poderoso?
Um não-crente também poderá achar a questão idiota: “é claro que não existe, não há nenhuma evidência a favor”. É verdade que não. Não obstante, a suposição de que Deus existe tem tido um papel crucial na História da humanidade. Como é que no passado se tentou justificar a crença num ser imaginário? Creio que é interessante descortinar os argumentos e identificar as falácias tanto mais não seja porque muita da argumentação que se fazia há 1000 anos atrás ainda se faz hoje em dia.
Na aula é feita uma ressalva importante: a Bíblia não serve como “prova”. Nenhum livro serve de prova para coisa nenhuma. Quando lemos um livro sobre factos, se algo nos parece questionável é natural e necessário procurar refutação ou confirmação noutro meio. O mesmo se aplica a livros de Ciência, claro.
Também é feita a adenda de que não se está a discutir razões psicológicas ou sociológicas que justifiquem as crenças religiosas. É possível e provável que a maioria dos supostos crentes o são por este tipo de razões e não por motivos filosóficos. Aliás, eu aventuro-me a admitir que a maioria dos valores éticos e morais com que nos identificamos não são normalmente escolhas filosóficas que possamos justificar com base em argumentos lógicos, mas são antes parte da cultura em que estamos inseridos.
Passemos então à Filosofia.
Anselmo, arcebispo de Cantuária (Inglaterra), que viveu entre 1033 e 1109, afirmou que era possível demonstrar a existência de Deus. Anselmo é considerado o fundador do Escolasticismo, uma das mais importantes escolas de Teologia que dominou a Filosofia durante séculos. Para justificar a sua afirmação, Anselmo apresentou uma demonstração dedutiva, um argumento ontológico sobre Deus. O ser ontológico significa que se trata de um argumento que parte de uma definição de Deus para demonstrar que a sua existência é consequência lógica da própria definição.
Anselmo define Deus como o melhor ser que é possível conceber. De acordo com esta definição, segundo Anselmo, Deus tem necessariamente que existir.
Porquê? Anselmo explica-nos que uma coisa só é concebível numa de duas formas: ou existe na nossa imaginação (como o Pai Natal) ou existe na nossa imaginação e na realidade. Até aqui tudo bem, certo?
Anselmo continua: podemos concordar que uma dada coisa é “melhor” se de facto existir na realidade além de existir na nossa imaginação, certo? Por exemplo, um chocolate XPTO muito saboroso é melhor se de facto existe!… Seria um fraco chocolate se não existisse e teria potencial para ser melhor se existisse.
Sendo assim, se definimos que Deus é o melhor que se possa conceber ou imaginar, isso implica que ele tem que existir porque só assim é que é mesmo o “melhor”!
Parece-lhe aceitável o argumento? Sim, concordo que o argumento é algo ridículo, mas ainda assim é suficientemente confuso para parecer que faz sentido. O que está mal com o argumento?
Do meu ponto de vista, duas coisas. Primeiro, algo não tem que ser “melhor” por existir. O que entendemos por “melhor”? Melhor para quê? Parece-me possível de se imaginar que algumas coisas possam ser “melhores” sendo apenas imaginárias. Segundo, poderemos imaginar coisas que não existem e que são as “melhores” e o facto de as definirmos como as “melhores” não torna a existência destas uma necessidade lógica.
De facto, pegando neste segundo ponto, muitos contestaram o argumento de Anselmo porque com ele poderia “provar-se” tudo e mais alguma coisa.
Anselmo ainda defendeu o seu argumento afirmando que ele só funcionava no caso de “seres necessários”… e que só havia um ser necessário: Deus.
Como é fácil de ver, a defesa de Anselmo é uma falácia porque essencialmente assume a tese que está a tentar provar. Isto é: supõe que Deus é um ser necessário (e que, como tal, existe), para salvar o argumento de que Deus existe… É como eu tentar demonstrar que os unicórnios existem começando o meu argumento com: vamos assumir que os unicórnios existem… logo os unicórnios existem.
(Note-se que o exercício lógico contrário pode ser válido: isto é, podemos partir de uma dada suposição para demonstrar que essa suposição está errada. Estou a falar da demonstração por redução ao absurdo que é usada em Filosofia (e em Matemática): assume-se que uma premissa é verdadeira e mostra-se que a mesma conduz a uma conclusão contraditória, o que implica que a suposição é falsa.)
De acordo com Immanuel Kant (1724-1804), a falha no argumento de Anselmo torna-se clara caso desenvolvamos um pouco a premissa: “se Deus existe, então ele é a melhor coisa que se pode conceber, mas isto, por si só, “ainda” não prova que Deus existe.” Ou seja, a premissa diz-nos desde logo que não podemos assumir a existência de algo por acharmos que seria melhor se existisse, pois esse algo melhor é uma suposição. Por outras palavras, a própria premissa destrói o argumento de Anselmo.
Nesta aula discute-se ainda brevemente um outro pseudo-argumento para a existência de Deus e que se traduz num reverter da questão: “como é que provas que não existe Deus?” Como detalhei no artigo sobre as Teorias da Conspiração, o ónus da prova está em quem afirma que algo existe. Não é possível demonstrar que coisas que não existem, de facto não existem. Relacionado com isto, em 1944, o filósofo britânico John Wisdom apresentou a “Parábola do Jardineiro Invisível” que adapto aqui directamente da wikipedia:
“Era uma vez, dois exploradores que chegaram a uma clareira na selva. Na clareira cresciam muitas flores. Um dos exploradores disse: “Algum jardineiro deve cuidar destas flores.” O outro discordou: “Não há jardineiro nenhum, as flores crescem assim por elas mesmas.” Para resolverem a discórdia, decidiram armar as suas tendas e ficar à espera… Passado muito tempo sem terem visto qualquer jardineiro, o primeiro explorador avançou uma nova hipótese: “Se calhar é um jardineiro invisível.” Para testar a hipótese, montaram uma cerca de arame farpado… electrificado… Criaram patrulhas com cães de caça… Mas não ouviram nenhum grito que sugerisse que o jardineiro tivesse recebido um choque… Os cães nunca ladraram… Ainda assim, o crente não estava convencido. “De certo que o jardineiro existe, é invisível, é intangível, é insensível a choques elétricos, é um jardineiro sem cheiro e que não faz barulho, mas é um jardineiro ama o seu jardim e que vem aqui secretamente cuidar dele.” Ao que o céptico, em desespero de causa, contestou: “Mas o que é que sobra desse teu jardineiro? Qual a diferença entre um jardineiro invisível, intangível e eternamente elusivo de um jardineiro imaginário ou de um jardineiro que não existe?!”
Na próxima aula iremos discutir argumentos um pouco mais sofisticados para a existência de Deus que foram propostos pelo eminente Tomás de Aquino.
“Se Deus existe, ele é omnipotente e pode impedir todo o mal; ele é omnisciente e sabe como o fazer; e ele é moralmente perfeito e por isso deseja o fim de todo o mal. Mas o mal existe, logo ou Deus não existe, ou se existe não tem estes três atributos.”
Este é um argumento muitas vezes apresentado por agnósticos e ateus. Confesso que não sou grande fã deste argumento porque é falível do ponto de vista de que Deus não se tem que guiar pela nossa moral. O que nos garante que saibamos definir uma moral perfeita (se é que tal é possível)? Ou o que é que nos garante que Deus concordasse com a nossa definição de “mal”? Ou porque é que Deus teria que agir podendo fazê-lo? Além disto, poderia ainda haver outros factores a considerar que poderiam impedir Deus de tomar uma atitude.
9 comentários
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3 reflexões:
1 – “Anselmo define Deus como o melhor ser que é possível conceber. ”
Por esta definição, eu sou Deus 😛
2 – Deus, a existir, criou o Universo. Sendo assim, vive fora do nosso Universo. Um ser exterior ao nosso Universo, que vive num espaço com mais do que 3 dimensões espaciais e mais do que 1 dimensão temporal, certamente que é completamente incompreensível para meros primos de macacos com um cérebrozinho a 3 dimensões.
Assim, quem diz que sabe o que “ele” quer, está a mentir.
E quem pensa que pode ter evidências da sua existência, também não tem qualquer hipótese racional de o fazer 😉
Porque, a existir, Ele está muito para além da nossa compreensão e evidências “detectáveis”. 😉
3 – “Qual a diferença entre um jardineiro invisível, intangível e eternamente elusivo de um jardineiro imaginário ou de um jardineiro que não existe?!”
Totalmente de acordo. Por definição, o jardineiro não existe 😛
abraço!
Author
1. E nada impede que haja mais um cento de deuses iguais a ti, porque não vejo porque é que tal definição tenha que corresponder a um só ser. 🙂
2. Eu colocaria aí algumas interrogações:
2.1: Deus pode existir sem que tenha sido ele a criar o Universo. 😛
2.2: Poderia Deus ter sido criado junto com o Universo? Nesse caso, ele poderia fazer parte do Universo.
2.3: Porque é que o espaço exterior ao Universo tem que ter mais dimensões espaciais e temporais? Para mim, os conceitos de espaço e tempo fazem parte do nosso Universo, pelo que não me parece necessário defini-los fora do Universo.
2.4: Concordo que a presunção destes primatas é algo absurda em assumir que possam compreender um ser externo ao Universo, ainda assim podem tentar. Dito isto, faz mais sentido tentar compreender o observável do que o puramente imaginário. 😛
2.5: Se Deus existir e se quiser ser detectável, imagino que possa ter definido alguma forma no Universo para que o possa ser. De novo, concordo que é bastante presunção dos nossos primatas assumir que Deus se deu a esse trabalho. Mas, já se sabe, estamos a falar de primatas muito egocêntricos. 😛
Abraço,
Marinho
1. Por definição, “o melhor” é só um: sou eu e mais nenhum 😛
2.1: o Deus Católico (e não só) é o criador do Universo. É assim concebido. Faz parte da definição de Deus ser o criador do Universo.
2.3: um ponto com uma dimensão, poderá estar desenhado dentro de uma folha com duas dimensões. Essa folha de 2 dimensões encontra-se num espaço a 3 dimensões. O Universo a 3 dimensões que conhecemos estará dentro de algo muito superior a ele, caso tenha sido criado por um ser nesse espaço de 4 ou 5 dimensões espaciais.
Se a definição de Universo é tudo o que existe (nas nossas 3 dimensões), então só algo exterior e superior (dimensionalmente) a ele o pode criar.
Basicamente, é continuar a história do Flatland 😉
2.5: “Mas, já se sabe, estamos a falar de primatas muito egocêntricos. 😛 ” — TRUE!!!! 😀
Menos eu, claro, que sou muito humilde, como se percebe até pelo ponto 1 😛
Author
1. Quer dizer que se houvesse alguém igual a ti, “o melhor” deixava de existir. :p
2.1: Faz parte da definição de alguns deuses serem os criadores, mas não é sempre. 🙂 Não nos precisamos de limitar.
2.3: Em Cosmologia não se costuma conceptualizar o universo dentro de um espaço, como se o espaço fosse algo externo ao universo. Ou seja, esta tua parte: “nas nossas 3 dimensões” – não faz sentido nesta conceptualização. As dimensões espaciais e temporais fazem parte do próprio universo. Se existir algo externo ao universo, esse algo não tem que necessariamente residir em algo “espacial” (ainda que seja difícil conceptualizar algo “não-espacial”).
2.5: A humildade é uma das tuas muitas qualidades. 😛
Abraço,
Marinho
“Faz parte da definição de alguns deuses serem os criadores, mas não é sempre. 🙂 Não nos precisamos de limitar.”
True!
Estava a assumir o Deus Católico, que penso que era o mesmo da definição de Anselmo.
“Em Cosmologia não se costuma conceptualizar o universo dentro de um espaço, como se o espaço fosse algo externo ao universo. (…) As dimensões espaciais e temporais fazem parte do próprio universo. Se existir algo externo ao universo, esse algo não tem que necessariamente residir em algo “espacial” (ainda que seja difícil conceptualizar algo “não-espacial”).”
True!
Concordo inteiramente.
Estava a seguir o mesmo raciocínio de Flatland.
Mesmo assim, o meu argumento mantém-se: algo exterior ao Universo, ao ponto de ter criado o nosso Universo, estará muito para além da compreensão do nosso cérebro a 3 dimensões dentro deste “pequeno” Universo 😉
“A humildade é uma das tuas muitas qualidades.”
Finalmente, estamos 100% de acordo em algo 😛 😛 😛 😛 😛
Já visitou o Brasil alguma vez em sua vida?
Infelizmente, *ainda* não 🙁
“Além disto, poderia ainda haver outros factores a considerar que poderiam impedir Deus de tomar uma atitude.”
Discutirá esses outros fatores em algum próximo artigo? Curioso por conhecê-los e exploramos (mesmo que infimamente).
Author
Olá Jonathan,
Hmm, penso que é improvável que venham a surgir num próximo artigo, mas quem sabe. :p
Referia-me ao seguinte: já vi teólogos a apresentarem algumas formas de responder ao raciocínio exposto na imagem, nomeadamente explorando a ideia de que Deus “quer” dar livre-arbítrio ao Homem e, como tal, isso resulta na hipótese de haver tragédias e tal. Por outro lado, também há a questão associada de assumir que existe vida após a morte e que Deus depois “paga” o saldo negativo a quem teve “azar” em vida. Não quero com isto afirmar que sejam bons argumentos, pois pelo menos os de cima dependem de mais suposições basicamente impossíveis de demonstrar.
Como escrevi no artigo, não gosto deste tipo de argumentação exposto na imagem. A razão principal é por começar com a premissa errada. Isto é, para mim o argumento não deve começar com “Se Deus existe…”. A questão não está no facto de Deus ser ou não coerente com as definições apresentadas. Até poderia ser coerente que isso não provava existência nenhuma. Para mim a argumentação deve ser: mostrem-me evidências de que Deus existe. Não me cabe a mim, ateu, provar que Deus não existe ou que não faz sentido na forma como é definido.
Abraço,
Marinho