Design Inteligente – CC(11)

Na décima primeira aula do Crash Course de Filosofia aborda-se a noção do “design inteligente”, o argumento de que Deus é a única justificação possível para que tenhamos o mundo fantástico que observamos:

Na décima aula apresentaram-se os primeiros quatro argumentos de Tomás de Aquino, sendo que o quinto (e último), o chamado argumento teleológico é o argumento do “design inteligente”. O argumento foi popularizado pelo teólogo e filósofo britânico William Paley (1743-1805). É talvez o argumento mais usado na actualidade para defender a existência de Deus.

Paley apresentou o argumento através da analogia do relojoeiro:

Se um dia descobríssemos um relógio perdido numa floresta, a nossa primeira inclinação seria assumir que o relógio tinha sido criado por alguém. Porquê? Porque é um objecto complexo e que tem um propósito claro. Não seria decerto um produto do acaso porque pareceria demasiado improvável que algo como um relógio pudesse surgir de forma “espontânea”. Seria necessário, à partida, que alguém tivesse pensado em colocar todos os seus mecanismos juntos com o intuito de medir o tempo.

Trata-se de um argumento “teleológico” porque assume-se que existe um propósito inerente ao relógio. É um objecto para medir o tempo. Foi pensado e criado para isso.

Da mesma forma, de acordo com Paley, a complexidade e os (aparentes) propósitos de tudo o que constitui o mundo sugerem a existência de um criador: Deus.

Entre a complexidade que podemos observar no mundo destaca-se o corpo humano: parece difícil imaginar como é que algo tão complexo como um ser humano possa ter resultado de processos aleatórios. Muitos acreditam que esta é a evidência mais óbvia a favor da existência de Deus: a nossa própria existência parece implicar a existência de um ser inteligente e transcendente que nos conseguiu criar.

Quer pensar em contra-argumentos? Onde é que falha esta analogia com o relógio?

  1. Antes de mais, o facto de algo parecer muito improvável não é uma demonstração de coisa alguma. Ganhar o EuroMilhões também é muito improvável e ainda assim é algo que acontece.
  2. O facto de parecer poder-se fazer um paralelo entre o relógio e o mundo natural não implica que de facto a analogia seja fiável. Pode-se constatar, por exemplo, que o relógio é passível de ser compreendido, enquanto que o mundo natural tem inúmeros aspectos difíceis de compreender ou explicar. Ou seja, enquanto que podemos compreender o criador e a criação de um relógio, é difícil traduzir essa compreensão para coisas no mundo natural. Sem essa compreensão, a atribuição de objectivos à criação parece ser mera especulação.
  3. A própria analogia pode ser considerada um pouco confusa porque o relógio se distingue como sendo algo especial nessa tal floresta… Não obstante, de acordo com o argumento, a própria floresta é também o produto de um criador.

 

Concorda com estes contra-argumentos? O primeiro pode não parecer um excelente contra-argumento por se parecer basear numa hipótese remota.

Ao segundo poder-se-á responder que o compreender não é muito relevante para a analogia, pois poderíamos trocar o relógio por um telemóvel. Isto é, se encontrássemos um telemóvel na floresta, poderíamos descobrir o seu propósito e assumir a existência de um criador sem que conseguíssemos perceber como funciona. Por outro lado, pode ser apenas uma questão de tempo até compreendermos os mecanismos do mundo natural.

Não obstante, compreender o propósito é crucial neste argumento “teleológico”: só se pode assumir a existência de um criador inteligente se de facto compreendermos em parte o objectivo das suas criações. Isto é, o argumento é presunçoso na medida em que assume que possamos compreender os objectivos de Deus olhando para o mundo que este supostamente criou. Porém, nada nos garante que tenhamos essa capacidade.

Alguns contemporâneos de Paley atacaram o argumento precisamente por este ponto: é difícil de explicar o propósito de imensos detalhes que podemos observar no mundo natural, nomeadamente o facto de termos um ponto cego nos olhos, ou o facto de existirem células nervosas que fazem “circuitos” muito pouco eficientes dentro dos corpos de muitas espécies animais, ou o facto de os bebés poderem nascer estrangulados pelo próprio cordão umbilical, entre muitos outras observações difíceis de atribuir a um criador inteligente. Paley contra-argumentou com o facto de que não compreender um propósito não implica que este não exista. Mas se não o compreendemos, então estamos simplesmente a assumir que ele existe e como tal o argumento não serve para provar nada.
Por outro lado, de acordo com o filósofo britânico David Hume (1711-1776), se quisermos concordar com Paley, então também teremos que concordar que o criador cometeu imensos erros, pois é fácil de apontar imensas coisas que poderiam ter sido mais bem feitas (como ser impossível um bebé nascer estrangulado).

O filósofo britânico Bertrand Russel (1872-1970) acrescentou um argumento adicional contra a teleologia do argumento: se precisamos de atribuir propósitos para que o argumento funcione, o que é que nos garante que não estamos simplesmente a inventar propósitos imaginários (como no cartoon abaixo)?

“OK, esperto… Se Deus não existe, quem é que projectou estas cadeiras?”

Russel deu um exemplo sarcástico:

The white tails of rabbits, according to some theologians, have a purpose, namely to make it easier for sportsmen to shoot them.

Tradução livre: “De acordo com alguns teólogos, a cauda branca dos coelhos tem um propósito que é tornar mais fácil aos caçadores conseguirem disparar sobre eles.”

 

Dito isto, é claro que há imensas coisas que parecem ter um propósito. Por exemplo, os nossos olhos permitem-nos ver e como tal podemos atribuir-lhes esse propósito. Contudo, o facto de algo parecer ter um propósito não implica necessariamente a existência de um criador. De facto, a complexidade e funcionalidade que observamos no mundo biológico pode ser explicada através da Teoria da Evolução, isto é, esta funcionalidade pode ter emergido com base em selecção natural e mutação aleatória.
(Além disso, a Teoria da Evolução também fornece explicações para os tais “erros”, nomeadamente o facto de que certas características reflectem o historial da evolução, a qual não pode simplesmente começar de novo sempre que algo não parece estar completamente optimizado.)
 

O filósofo britânico Richard Swinburne (1934-) tentou defender o design inteligente com base num ponto de vista probabilístico. A Swinburne parece-lhe “demasiado” improvável existir este mundo cheio de complexidade sem que exista um criador. Infelizmente para ele, o “achar” não serve como argumento. Não sei se é o caso de Swinburne, mas muitos concordam com ele por não compreenderem a Teoria da Evolução. O facto das mutações aleatórias serem uma parte crucial da teoria pode parecer implicar que os processos evolucionários resultam num mundo biológico aleatório. Tal não é verdade por causa da selecção natural que é tudo menos aleatória! Todas as mutações aleatórias que não resultem numa vantagem para a reprodução da espécie acabam por desaparecer, o que implica que efectivamente temos um acumular de mutações vantajosas para a espécie.

 

Será que com tudo isto o argumento do design inteligente está morto? Não. A Física moderna parece providenciar evidências que dão ânimo ao tal ponto de vista probabilístico de Swinburne. Sabemos que se o planeta Terra não fosse como é, não estivesse onde está, se não estivesse à distância “certa” do Sol, se não tivesse a Lua e a disposição de outros corpos celestes, etc., a vida na Terra não seria possível. A isto poderemos responder e bem, que a Terra é apenas um planeta entre muitos biliões, pelo que não é assim tão estranho que pelo menos um tenha sido capaz de ter as condições que permitem o emergir da vida. Contudo, o argumento probabilístico não se fica por aqui: parecem também existir evidências que sugerem que bastava as constantes da Física serem ligeiramente diferentes para que não pudesse existir vida no universo. Alguns cientistas pensam que a resposta a isto é que tenha que haver um multiverso, isto é, uma infinidade de universos, de tal forma que seja então concebível que muitos universos não tenham vida, mas que alguns tenham. A verdade é que estamos perante questões na fronteira da Ciência e é ainda difícil avaliar se poderemos confiar nas probabilidades que conseguimos estimar. Para mim, o irónico neste argumento é basear-se de forma directa na Ciência, a mesma Ciência que em muitos outros aspectos está em conflito com a hipótese de existir Deus.

““Design inteligente“? – Olhem-me só estes imbecis condescendentes!”
Este é de facto um dos problemas no argumento teleológico: o assumir que podemos compreender a “inteligência” do criador.

2 comentários

  1. “Sabemos que se o planeta Terra não fosse como é, não estivesse onde está, se não estivesse à distância “certa” do Sol, se não tivesse a Lua e a disposição de outros corpos celestes, etc., a vida na Terra não seria possível. ”

    Vida como a conhecemos…
    Titã, por exemplo, não está no mesmo sítio que a Terra, não está à distância supostamente certa, etc… mas poderá ter vida diferente daquela que estamos habituados na Terra.

    “bastava as constantes da Física serem ligeiramente diferentes para que não pudesse existir vida no universo. ”

    Vida como a conhecemos atualmente neste Universo e na Terra…
    Não me choca que outra vida absolutamente diferente desta, baseada em constantes com outros números, pudesse se ter desenvolvido noutro universo qualquer (by the way, abomino a génese desta ideia do multiverso 😛 )


    O problema deste argumento do design inteligente é, como sempre, o ego humano, o geocentrismo psicológico, de achar que somos tão importantes no universo que alguém superior a nós tem que estar sempre muito interessado em nós.

    abraço!

    1. Olá Carlos,

      Tanto quanto se sabe, a questão das constantes da Física é um pouco mais curiosa do que isso, porque supostamente a vida (seja ela como for) deve depender de uma certa complexidade química a qual só é possível para constantes da Física muito específicas.
      Anyway, concordo que estas estimativas sobre a improbabilidade das constantes da Física é um bocado precoce porque de certa forma assume que podemos confiar por completo nas teorias Cosmológicas que temos, o que não é verdade.

      “O problema deste argumento do design inteligente é, como sempre, o ego humano, o geocentrismo psicológico, de achar que somos tão importantes no universo que alguém superior a nós tem que estar sempre muito interessado em nós.” – É um argumento religioso… Já se sabe que a modéstia não é o forte das religiões. :p

      Abraço,
      Marinho

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