Dr. Fauci disse que as máscaras não protegem?

Não, não disse.

Como é evidente, isto é só mais uma parvoíce que anda a ser divulgada pelos negacionistas.
E, infelizmente, esta é mais uma mentira que se tem tornado viral…

Crédito: Pete’s Sports Music and Magnets, via eBay.

O Dr. Anthony Fauci é um dos médicos mais proeminentes nos EUA. A sua contribuição científica para a medicina é reconhecida internacionalmente.
Tendo um curriculum de excelência na medicina, ele foi conselheiro de saúde de vários presidentes, democratas e republicanos, desde Ronald Reagan, passando por Bush e acabando em Obama e Biden.
Devido ao seu trabalho, recebeu várias medalhas de mérito das mãos de diferentes presidentes.

Curiosamente, só um presidente questionou o seu trabalho: Trump.
Trump queria dizer as tretas que quisesse, sem ninguém o questionar. Fauci desmentia-o. E Trump não gostava.
Os seguidores da seita religiosa de Trump, obviamente, detestavam Fauci por ele desmentir o seu deus/guru.
E com Trump a ressurgir para a política, lá voltam as conspirações a envolver Fauci, nas hostes dos negacionistas pró-Trump.


No início da pandemia, o Dr. Fauci não viu necessidade da obrigatoriedade da utilização de máscaras (lembro que a mentalidade americana é contra as pessoas serem obrigadas a fazer algo), porque, segundo ele, só pessoas que tivessem a doença deveriam usar máscaras.
(em Portugal, a Direção-Geral da Saúde também disse que as máscaras não eram necessárias, por uma questão prática: não existiam máscaras no mercado para toda a gente, e as que haviam, eram necessárias para o pessoal de saúde).

No entanto, à medida que os primeiros meses passaram, e se percebeu que vários doentes eram assintomáticos (podiam transmitir, mas não tinham sintomas visíveis), então passou a existir a necessidade de toda a gente utilizar máscara (porque não se sabia quem estava e quem não estava infetado).

Na altura, Fauci foi atacado por mudar de opinião. Mas ele estava a fazer o que dita a ciência: em face de novas evidências científicas, a política de saúde tem que se ajustar.


Na semana passada, o Dr. Fauci deu uma entrevista para o jornal The New York Times, aqui, onde reflete sobre a resposta que foi dada durante a pandemia.

Nessa entrevista que vale a pena lerem, os negacionistas, a extrema-direita e até Elon Musk, dizem que ele afirmou que as máscaras não funcionam.
Isto é mentira!

O entrevistador citou um estudo feito ao uso de máscaras no Bangladesh, durante 2 meses.
O artigo científico sobre esse estudo, está aqui.
(nota: há inúmeros estudos feitos na Europa, EUA, etc, em que todos apontam para a eficácia das máscaras. Mas o entrevistador foi buscar um estudo ao Bangladesh).

Sobre que era o estudo?
Os investigadores estudaram o uso de máscaras em diversas aldeias no Bangladesh. Em algumas aldeias, os investigadores promoveram o uso das máscaras. Noutras aldeias não.
Nas aldeias em que existiram atividades de promoção do uso da máscara, cerca de 42% das pessoas passaram a usar máscara. Nas aldeias em que não existiram acções de sensibilização do uso de máscara, somente 13% das pessoas utilizaram máscaras.
Nas aldeias em que as pessoas utilizavam máscaras, o resultado foi uma redução de 12% nos indivíduos com sintomas de COVID-19.

Ora bem, existem aqui várias limitações que me chamaram logo à atenção.
Se nas aldeias onde foi promovido o uso de máscara, mesmo assim menos de metade das pessoas utilizaram máscaras, então não se pode tirar conclusões sobre a eficácia das máscaras – precisamente porque menos de metade das pessoas a utilizou. Assim, a maioria das pessoas continuou a disseminar o vírus sem qualquer proteção.
A outra limitação é que o resultado é sobre indivíduos com sintomas: sendo estes uma minoria na população, então não se consegue tirar conclusões sobre a eficácia do uso das máscaras – precisamente porque não se sabe a quantidade de indivíduos com o vírus, apesar de não terem sintomas.
Isto são limitações que me saltam logo à-vista.

E notem uma característica essencial: o estudo não é sobre as máscaras, sobre a eficácia das máscaras.
O estudo é sobre a eficácia de iniciativas de promoção do uso de máscaras, e como isso depois se reflete na comunidade (no seu uso e na saúde pública).

Se não olharmos para as limitações, se nos atentarmos só nos números, mesmo assim, é claro que as máscaras funcionaram: se existiu uma redução de 12% no número de pessoas com sintomas de COVID-19, isso quer dizer que existiram muitas mais pessoas (40%?) sem o vírus SARS-CoV-2: pessoas com sintomas e sem sintomas. Se a única variável fosse a máscara, isso quereria dizer que nas aldeias onde as pessoas utilizaram a máscara, então podia-se inferir que foram essas pessoas que ficaram protegidas contra a COVID-19. As que não utilizaram máscara, contraíram o vírus.

Só não se pode tirar estas conclusões, porque o estudo não é sobre a eficácia das máscaras, mas sim sobre a eficácia das iniciativas para o uso de máscara.


Tendo tudo isto em conta, será que com um estudo tão limitado, o Dr. Fauci tirou uma conclusão tão revolucionária? (em oposição a todos os estudos)
Não.

As palavras exatas do Dr. Fauci, em relação à pergunta sobre esse estudo específico, foram:
“From a broad public-health standpoint, at the population level, masks work at the margins — maybe 10 percent. But for an individual who religiously wears a mask, a well-fitted KN95 or N95, it’s not at the margin. It really does work.”
“De uma perspetiva geral de políticas de saúde, em termos da população em geral, as máscaras não aumentam muito a proteção – talvez somente 10%. Mas para um indivíduo que utilize religiosamente/diariamente uma máscara, uma das boas (KN95 ou N95), então essa proteção é bastante eficaz. As máscaras funcionam.”

Ou seja, em relação à pergunta sobre o estudo no Bangladesh, tendo em conta o fraco uso de máscaras na comunidade (aldeias), então essas iniciativas de promoção do uso de máscaras, pouca eficácia têm: mesmo com essas iniciativas, menos de metade das pessoas passaram a utilizar máscaras. Por isso, é normal que, numa comunidade em que a maioria das pessoas não utilizem máscaras, a sua eficácia geral seja baixa.
Mas a nível individual, os estudos mostram que para a pessoa, a utilização de máscara é muito eficaz na redução da disseminação da COVID-19.

Claramente, os negacionistas manipularam as palavras iniciais do Dr. Fauci, e omitiram propositadamente a segunda parte dessa resposta, de modo a, mais uma vez, passarem informações erradas sobre a COVID-19.

Fontes: The New York Times, Associated Press, Yahoo News.