Desde os confins da minha mais tenra memória, os animais nunca foram para mim meros coadjuvantes na grandiosa orquestra da vida. Para além das paredes da ciência e da racionalidade que me formaram, há um espaço sagrado, não no sentido religioso, mas em termos de reverência para com esses seres magníficos. São entidades emocionais complexas, cuja existência nunca deveria ser reduzida ao papel de meros figurantes no teatro da experiência humana.
São, de facto, sinfonias vivas e pulsantes, cujos compassos são marcados pelo ritmo dos seus corações, e cujas notas se reflectem no olhar puro e inquisidor com que encaram o mundo e, ocasionalmente, partilham connosco. Cada animal é um livro silente numa biblioteca universal, aguardando pacientemente que lhe concedamos o devido valor, que transcende as limitações da nossa linguagem e do nosso entendimento.
Somos falíveis, nós, os autodenominados Homo Sapiens. Falhamos porque, embora sejamos capazes de vislumbrar universos em expansão e decifrar os mistérios da matéria, continuamos a ignorar a simples e inegável verdade de que toda a vida merece respeito e compaixão. É a nossa tragédia, sim, mas é também a nossa oportunidade para a redenção.
O nosso mundo tem sido modelado, em grande parte, por sistemas de crença que nos posicionam no centro do universo. A religião, em muitas das suas manifestações, perpetua a visão de que somos os senhores de tudo o que nos rodeia, uma visão que faz dos animais os nossos subalternos, desprezados no seu direito fundamental de existir, independentemente da utilidade.
Ao perpetuarmos antigos credos e dogmas, estamos a lançar as sementes de uma humanidade cada vez mais desligada da sua essência compassiva. Destituímo-nos, nessa autoflagelação ideológica, do direito inalienável de coabitar num mundo onde cada ser, na sua impressionante singularidade, merece o mais profundo respeito e consideração.
A obstinação religiosa, que insiste em colocar-nos como actores principais num cenário cósmico indiferente à nossa presunção, é não só uma heresia contra a intricada rede do universo, mas também uma traição à maravilhosa complexidade que não pode ser confinada pelas palavras de textos milenares, ou pela estreiteza de visões teológicas.
Portanto, se realmente pretendemos ser os exploradores de novos mundos e os decifradores dos segredos cósmicos, devemos começar pela mais básica das premissas; cada ser, humano ou não, tem uma dignidade intrínseca que deve ser respeitada. Este é, ou deveria ser, o verdadeiro norte da nossa bússola ética, a estrela polar em torno da qual toda a civilização digna desse nome deve gravitar.
Somos os escribas deste grande épico cósmico, e o tinteiro ainda está cheio. Temos a oportunidade, talvez mesmo o imperativo ético, de reescrever estes versos. A escolha é nossa; podemos perpetuar o papel de vilões nesta tragédia em curso ou elevar-nos, redimindo-nos através da expansão da nossa ética e da nossa compaixão.
E eis que me deparo com um dilema íntimo, pessoal, uma contradição que me atormenta no mais fundo do meu ser. Ainda não tomei a senda do vegetarianismo ou do veganismo, apesar do clamor silencioso que ressoa em mim, uma voz que insiste em ser ouvida. Talvez seja falta de coragem, talvez seja uma hesitação influenciada por prazeres carnais que o meu paladar ainda relucta em abandonar. Seja qual for o motivo, reconheço neste acto uma dissonância, uma nota fora de tom na sinfonia da minha própria evolução como humano.
Se tanto a minha alma como o meu intelecto convergem na defesa de uma existência mais justa e igualitária para todas as formas de vida, então é imperativo que as minhas acções físicas reflictam essa harmonia. Este é, indubitavelmente, o próximo marco na minha jornada pessoal, um desafio cuja importância sinto ser irrefutável, e que estou decidido a abraçar num futuro próximo.
Neste enigma, detecto um apelo irrefutável à autenticidade, uma aspiração para uma coerência que ultrapasse a mera retórica e se infiltre em cada recanto do meu ser, desde as escolhas que tomo até ao alimento que me sustenta. Nesta fronteira entre o meu estado actual e a pessoa que almejo vir a ser, compreendo que a verdadeira transformação transcende o mero intelecto; é, na sua essência, um fenómeno viscerante, uma metamorfose. Inicia-se no âmago da minha consciência emocional para depois se propagar, de forma irrevogável, por todo o meu ser.
E assim, ao reconhecermos o valor intrínseco de todas as formas de vida, poderemos finalmente alcançar uma verdadeira humanidade, uma que transcenda as barreiras da espécie, da geografia, e dos dogmas que nos limitaram durante tanto tempo. Ao fazer isso, talvez nos possamos tornar dignos dos mistérios que o universo ainda tem para revelar.
Talvez, apenas talvez, nos possamos tornar os verdadeiros poetas do cosmos, e, em cada palavra e acção, celebrar a beleza e a dignidade de todas as criaturas que partilham este planeta connosco.
13 comentários
Passar directamente para o formulário dos comentários,
“toda a vida merece respeito e compaixão.”
mesmo as baratas, os mosquitos, os micróbios e as cobras? 😛
“somos os senhores de tudo o que nos rodeia, uma visão que faz dos animais os nossos subalternos, desprezados no seu direito fundamental de existir, independentemente da utilidade.”
Pois, é uma questão de Ego vs. Eco 😉
https://www.astropt.org/2012/07/17/ego-vs-eco/
Partilho da mesma dissonância.
Mas penso desta forma: ainda não evoluímos biologicamente (não é uma questão mental) para o veganismo. Ainda precisamos biologicamente de carne. E a evolução biológica pode demorar muitos milhares de anos, quiçá neste caso até milhões… 😉
abraço!
Author
Não acho que o cérebro de uma barata possa ser equiparado com, por exemplo, o cérebro de um golfinho, ou mesmo de um cão, e os micróbios não têm cérebros.
A dissonância cognitiva não é necessariamente negativa, sem ela acho que náo estariamos muito bem, faz parte do nosso molde neurológico, diria. Na minha mais humilde perspectiva, contudo, e eticamente falando, considero a vida de uma barata inferior à vida de um cáo. Isto no sentido de senciência, claro, na maneira em como cada um experiencia a vida. Porém, não vou matar uma barata; ignoro-a, ou se tiver a dormir comigo no quarto, meto-a fora da janela.
“Não acho que o cérebro de uma barata possa ser equiparado com, por exemplo, o cérebro de um golfinho, ou mesmo de um cão, e os micróbios não têm cérebros.”
Porque não se pode equiparar?
Porque os micróbios, sem cérebro, os faz inferior a golfinhos?
Qual é a tua base de comparação? 😉
O que é que eu pretendo com estas perguntas? 😉
Fazer-te refletir que, nessas tuas comparações, estás a entender o cérebro como algo especial. E porquê? Porque os Humanos o têm. Ou seja, colocas os Humanos como a medida de tudo o resto (quer vida na Terra, quer quiçá vida no Universo).
O facto de conseguirmos subir às árvores não nos faz melhor que os golfinhos.
E o facto de termos cérebros não nos devia fazer melhores que os micróbios.
Se a medida do Universo forem os micróbios, certamente que eles vão achar que os cérebros são desnecessários 😉
“considero a vida de uma barata inferior à vida de um cáo. Isto no sentido de senciência”
Porque a senciência tem de ser a medida?
Para Micromegas, nós nem existíamos. Éramos incrivelmente inferiores a ele. Tão inferiores, a todos os níveis (de sentidos, senciência, etc), que ele nem se deu conta que nós existíamos como seres terrestres.
Colocarmos nós os micróbios como medida da vida no Universo, seria o mesmo que o Micromegas nos colocar a nós: seres considerados incrivelmente inferiores, insignificantes.
Ou seja, para mim, que penso como o Micromegas 😛 , não me parece que o ser humano seja uma boa medida no Universo, o ser que tem características que possamos comparar com outros seres.
Acho que damos muita importância a certas características, porque as temos. Se tivéssemos outras, dávamos mais relevância a outras características. Se fossemos peixes, por exemplo, diríamos que era mais importante respirarmos debaixo de água, já que a água é que compõe a maior parte da superfície do planeta. Por isso, nesse caso, os Humanos seriam considerados inferiores 😉
abraço!!
Author
A visão antrópica do mundo assombra-nos a todos, e é extremamente difícil não fazer da perspectiva humana um paradigma em quase tudo.
Mas qual será a solução, então?
Fizeste-me pensar, sim. Obrigado, sir!
Abraço!
Não tenho uma solução objetiva.
Pessoalmente, ou seja, de forma subjetiva, tento combater esse ego humano, a que chamo de geocentrismo psicológico.
Mas nota que isto é só uma reflexão teórica. Na prática, sou um hipócrita 😛 . Afinal, mato moscas, mosquitos, formigas, etc. É a lei do mais forte. Em prol do meu conforto, passo a achar que eu tenho mais direito do que os animais, a estar aqui. 🙁
Se sairmos da vida na Terra e passarmos à cosmologia, há muitos anos atrás, por exemplo, discuti com o Sir Martin Rees, numa conferência, porque achei o livro dele Just Six Numbers como demasiado “unicêntrico” – para ele, a medida do Universo é “este Universo”, ou até a forma como o medimos. Se o Universo tivesse outras constantes, não há qualquer razão para pensarmos que não poderia ter vida… simplesmente seria vida absolutamente diferente do que conhecemos.
Isto para te dizer que acho que isso está impregnado na nossa mente. Não é algo fácil de fugirmos.
Vê lá que até dizemos “pôr-do-Sol”, quando nem é o Sol que se põe, mas sim a Terra que gira. Mas como, para nós, é o Sol que se põe, então dizemos dessa forma. Ou seja, até a nossa linguagem está limitada aos nossos sentidos, que nos enganam muitas vezes 😉
abraço!
Author
Martin Rees, Astronomer Royal!
É extremamente difícil fugir ao instinto, ao geocentrismo psicológico (gosto), mas não é impossível. De qualquer forma não apelo ao veganismo, longe disso, foi mesmo algo pessoal, muito intímo, mas que achei que devia partilhar. O que pretendo mesmo é acabar com a tortura, o desporto, e tudo o que envolva o abuso sistemático, planeado, de outros seres vivos. Acho que isso até nem é assim tão difícil, ou será?
Obrigado, e abraço!
Depende do que consideras tortura… 😉
Eu já gostei de jardins zoológicos. Agora não gosto. Só daqueles abertos, com os animais livres.
Também já fui contra ter animais em casa, porque sempre achei que lhes era restringir a liberdade. Sobretudo se forem cães grandes em apartamentos pequenos. Mas agora tenho um e acho que ele é feliz. Mas é cão pequeno e tem muito jardim para andar livremente 😉
Por outro lado, penso nas crianças. Elas para tentarem perceber, manuseiam as coisas. Darwin, Feynman, etc, contam como faziam em criança. E há sempre o “arrancar patas” de mosquitos, etc.
Obviamente, para os animais isso será uma tortura. Mas será que não é assim que se vai aprendendo?
E plantas? Sempre que damos flores, não torturamos uma planta? 😉
https://www.astropt.org/2023/05/03/plantas-emitem-sons/
Ou seja, é um tema que dá muito para conversar 🙂
Author
Com tortura refiro-me a infligir sofrimento psicológico ou físico a uma entidade viva, consciente, por lazer, por influência gastronómica (penso em Foie Gras, por exemplo), ou por mera psicopatia.
Jardins Zoológicos, também adorava quando era criança, e agora, em adulto e com uma visão do mundo mais refinada, perspicaz, e espero eu mais sapiente, considero que são algo necessário para as espécies que ainda lá vivem, ainda que abomine a ideia de manter animais selvagens confinados, independentemente da sua história. O dinheiro dos visitantes poderá servir para manter o Jardim como que um santuário animal, onde as pessoas podem aprender mais sobre os nossos companheiros não-humanos, por exemplo, e onde pessoas como eu podem ver, cheirar, e ouvir a beleza animal em todo o seu esplendor. Claro está, se fizéssemos isto bem, talvez fosse possível acabar com os Zoos daqui a uns tempos, especialmente se impedíssemos a procriação, o que acaba por ser outro dilema ético por si só.
Relativamente à aprendizagem das crianças; diria que existem outras maneiras da criança aprender, sem ser tirar patas, cabeças, ou enforcar gatos como se não houvesse amanhã. Acho que se deveria inculcar sensibilidade relativamente a todos os seres vivos, em todas as crianças, logo desde do início e a um nível mais intenso que o usado actualmente. Tanto eu e tu sabemos que o geocentrismo psicológico provém, na maior parte dos casos diria, de uma visão teológica, criacionista, em que é forçosamente carimbado na alma de todos, que o ser humano é dono e senhor do planeta, e que todos os seres vivos que lá vivem são por consequência nossos vassalos naturais.
Vou ler o artigo das plantas e dons sons 🙂
Abraço!
Concordo contigo a 100%, claro.
Eu não sei se esta minha “mudança” em relação aos animais não veio da Disney.
Ninguém me inculcou essa sensibilidade em relação aos seres vivos.
Mas desde criança, era um ávido devorador de Disney Especial, entre outras coleções da Disney, que ainda tenho.
Nesses livros aprendi:
– sentido crítico (histórias do Mickey e Pateta como detetives, em que tudo o que era fantasmas, normalmente eram “pessoas”, como no Scooby-Doo)
– sobre extraterrestres e viagens espaciais: eram as histórias que mais me fascinavam.
– sendo eles (Patinhas, Donald, Mickey, Pateta, etc) patos, vacas, ratos e outros animais, talvez tenha começado a ver os animais como “humanos”…
Ou seja, até pelo meu caso, vejo que nunca se sabe onde se vai buscar a inspiração para mudar, para pensar de forma diferente.
No meu caso, na minha família ninguém é de ciência, ninguém me incentivou para a ciência, ainda hoje não sabem o que faço nos EUA porque a ideia de trabalho deles é das 9 às 18h, etc.
Mas penso que o que me levou para lá da imaginação foram esses livros da Disney – dados pelo meu padrinho no Verão, quando nos levava para a praia 😉
abraço!
Author
Relativamente à biologia humana; estaria a mentir se dissesse que entendo alguma coisa sobre os meandros do mundo microscópico, mas não é possível criar os nutrientes que necessitamos, todos eles, em laboratório?
O que é biológico é melhor do que o que é feito em laboratório 😀
Subjetividade se paga com subjetividade. Então, se você se permitiu um comentário pessoal sobre sua alimentação, permita-me também o meu comentário pessoal ao mesmo respeito.
Desde que me entendo por gente, sou ovo-lacto-vegetariano. Não, eu NÃO ME TORNEI ovo-lacto-vegetariano, da mesma forma como JAMAIS ME TORNAREI vegano (no sentido literal do termo). Eu simplesmente NÃO GOSTO DE CARNE!
Aceita que dói menos, vegano, e deixe de ser chato, alimentação é algo pessoal e portanto, carregado de subjetividade.
E quando você fala em “gosto”, no sentido da alimentação, você está falando SOBRE o S-A-B-O-R que determinado alimento produz em suas papilas gustativas. Se este sabor é agradável, você GOSTA do alimento em questão; já se o oposto, você NÃO GOSTA do alimento em questão.
Então, quando eu revelo que não gosto de carne, eu NÃO ESTOU DIZENDO “cresci carnívoro e num dado momento tomei consciência e me tornei vegano, abandonando o consumo de carne”, eu simplesmente estou assumindo que “o consumo de carne deixa um S-A-B-O-R DEVERAS DESAGRADÁVEL em minhas papilas gustativas”. Ou seja, lá pra trás, quando eu devia ter por volta dos 7, 8 meses de vida (talvez um ano ou um pouco mais de um ano, não me lembro QUANDO com exatidão), ao – minha mãe – colocar carne PELA PRIMEIRA VEZ em minha boca, eu não pensei: “Hmmm, que gostoso, quero mais”, ao contrário, eu senti um gosto absolutamente desagradável (hoje, já adulto e já tendo capacidade de discernir sobre meu passado, posso assegurar que o que senti foi um gosto semelhante ao de comida em estado de putrefação) e simplesmente CUSPI FORA o pedaço de carne. E era um pedacinho minúsculo, devia ter em média 1 ou 2 CENTÍMETROS em seu tamanho, e também não era qualquer carne, era simplesmente filet mignon (uma carne que pelo menos 90% da humanidade aprecia consumir), e nunca mais coloquei – tampouco deixei outrem colocar – qualquer outro pedaço de carne em minha boca. Simples assim.
Então deixo esse apelo aos veganos: PAREM, simplesmente PAREM de me azucrinar com essa tentativa de cooptação de me tornar militante pró-veganismo! Não o sou. O fato de eu não consumir carne NÃO SIGNIFICA abandono desse alimento, eu simplesmente detestei seu sabor logo na primeira degustação de minha vida, e nunca mais foi posto outro pedaço em minha boca.
E também solicito que PAREM de me acusar de carnivoria apenas porque defendo o direito à LIBERDADE DE CONSUMO com relação à alimentação. Cada ser humano é LIVRE para consumir os alimentos os quais sente agradáveis em seu paladar. Simples assim, como diria a Betina.
Se vocês estudassem só um pouquinho sobre “alimentação”, como arrogantemente afirmam que estudam nas redes sociais, veriam que muito da alimentação consumida por uma dada pessoa está relacionada com o fator Rh DO CONSUMIDOR, nem sempre é algo cultural, imposto por “papai e mamãe” (aliás, perdi a conta de quantas vezes já não fui ameaçado de morte por tiro de pistola pelo meu próprio genitor caso não consumisse carne, e de quantas vezes já não tomei coronhada da mesma pistola e surras magistrais, só porque ELE consumia e desejava que eu também consumisse, ou só porque “faz bem à saúde”).
Abraços a todos!
Author
Obrigado pelo comentário!
Bem, no meu caso é mais que a simples entrega total do meu palato aos prazeres da carne. De cada vez que a como, lembro-me do animal que teve de morrer e pergunto-me se era mesmo necessário. Porquê? A mim, pessoalmente, dói-me a alma, o espírito, se é que tenho um, saber que ainda matamos outros seres vivos, muitas vezes sencientes. Considero que chegámos a um patamar tecnológico em que podemos tentar ser mais audazes, e proliferar bens alimentícios que não tenham tido, outrora, uma existência propriamente dita.
Para mim é também uma luta, uma evolução do meu Eu; chegar ao ponto de considerar a preferência por algo que sabe a trapos deslavados, a comer vidas.