Num mundo que se orgulha da sua sofisticação tecnológica e avanços éticos, onde a bioética, os direitos humanos e a inteligência artificial frequentemente ocupam os púlpitos das discussões intelectuais, a existência de uma prática tão abjecta e detestável como a tourada, é um enigma sociocultural desconcertante e uma afronta à razão.
E aqui, em Portugal, este anacronismo persiste, ostentando-se como uma tradição cultural, um espectáculo, uma arte até. Um anacronismo que deveria mergulhar-nos numa profunda vergonha existencial, e não ser o mote para celebrações efusivas.
Ah, a tradição! Este argumento sacrossanto, brandido com uma devoção quase religiosa, como se a palavra em si fosse um escudo hermético contra qualquer crítica, um refúgio para a razão castrada e a empatia sufocada. Um mantra repetido em loop, automatizado, quase robótico, numa tentativa patética de justificar o injustificável.
Contudo, permitam-me uma digressão filosófica: a tradição, por si só, não confere virtude. O apedrejamento, a escravidão, crianças a fumar no dia de Reis, ou a Queima do Gato, também eram tradições. A tradição, então, não é mais do que a velha guarda da estupidez humana, uma relíquia a ser questionada, e não uma virtude a ser venerada.
A tourada é uma procissão macabra de sadismo requintado e agonia dilacerante.
Imagine-se o cenário; um touro, confinado e angustiado, é lançado numa arena. Picadores armados com lanças cravam-na na carne do animal, rasgando músculos e nervos, resultando num espectáculo de sangue e sofrimento que se desenrola perante uma plateia em puro êxtase. Matadores, esses bailarinos da morte, fazem a sua entrada, provocando e torturando o animal já debilitado, numa dança grotesca que culmina com a estocada final, um golpe que trespassa o coração ou os pulmões do animal, que, em agonia profunda, se afunda no seu próprio sangue. E tudo isto em nome do quê? Entretenimento? Tradição? Arte?
Há algo profundamente perturbador, quiçá psicopático, em extrair prazer do sofrimento alheio. E não nos enganemos; é sofrimento, é tortura, e sim, é extremamente imoral.
A ciência já nos elucidou, de maneira incontestável e definitiva, que os animais não são meros objectos desprovidos de sensações ou consciência; eles sofrem, sentem emoções, estabelecem laços sociais. Como podemos então, com uma lógica retorcida e aberrante, e em nome da Tradição, dar as costas a essa realidade, acabando por sufocar a nossa própria capacidade de empatia, como se estivéssemos a amputar deliberadamente um pedaço da nossa própria humanidade?
Que espécie de ética aberrante nos motiva a fechar olhos e ouvidos ao grito agonizante de um touro, perfurado por bandarilhas pontiagudas, cujo sangue vital tinge a areia com matizes de um vermelho nauseabundo, enquanto nos deleitamos com requintes de prazer na sua indizível agonia ?
O argumento da tradição é, novamente, uma cortina de fumo, uma fachada frágil por detrás da qual se esconde uma verdade mais incómoda; a tourada é o espelho de uma sociedade que ainda não aprendeu a respeitar a vida em todas as suas formas. É uma expressão de um tipo de humanismo distorcido, que estende a sua empatia apenas até aos limites da espécie humana e que vê nos outros animais, nos nossos parentes evolutivos, nada mais do que objectos de uso e abuso. Tal visão do mundo é não só intelectualmente empobrecedora, como eticamente falida.
Se o critério para merecer consideração ética é a capacidade de experimentar dor, sofrimento e angústia, como podemos justificar a nossa surdez moral que nos permite perpetrar, e até se regozijar, em rituais que impõem a seres sencientes tormentos inimagináveis?
Ah, e claro, a divina providência, a eterna resistência anti-humanista! Quão convenientemente é invocada para justificar os abusos infligidos aos nossos irmãos não humanos? É como se um capricho teológico desculpasse o sofrimento terreno; “Deus criou os animais para o nosso consumo“, proclamam os fiéis, de mão no peito, como se tal argumento fosse um antídoto mágico contra a ética e a compaixão.
É uma falácia que não só denota um flagrante desprezo pela ciência e pela razão, mas também expõe, ao mesmo tempo, uma contradição moral grotesca. Ao fecharmos os olhos para a dor que causamos aos outros seres sencientes, sob o pretexto de estarmos abençoados por uma divindade que, supostamente, colocou tudo à nossa disposição, revelamos nada mais do que uma arrogância antropocêntrica disfarçada de piedade. É uma ironia cruel, digna de um conto kafkiano, que a mesma religião que prega a compaixão e o amor ao próximo se torne cúmplice de tamanha brutalidade quando o “próximo” não pertence à espécie Homo Sapiens.
Ah, e os grandiosos políticos de bolso, esses paladinos da democracia que paradoxalmente erguem a bandeira do sofrimento animal como se fosse um símbolo de liberdade democrática. Quando a democracia se torna o altar onde sacrificamos a ética e o bem-estar de seres capazes de sentir, torna-se uma caricatura de si mesma. O argumento de certas personagens famosas é um acorde dissonante numa sinfonia que deveria celebrar a vida e a compaixão, não a agonia e o derramamento de sangue.
O dilema não reside em quem assiste ao espetáculo, mas em quem se encontra no epicentro da dor, o animal. A ética transcende as estatísticas de maiorias e minorias; ela é, ou deveria ser, a ressonância de uma verdade mais profunda que não pode ser silenciada por argumentos tão superficiais. Portanto, antes de entoar hinos à liberdade que as touradas supostamente representam, talvez seja prudente ponderar o preço ético dessa sua tão apregoada liberdade.
Na tourada desvenda-se um dos episódios mais sombrios do nosso património cultural português, uma nódoa repulsiva que conspurca o nosso tecido social, e nos arremessa de volta a uma época menos iluminada da condição humana. Chegou o momento de encerrar este capítulo sangrento, e relegar a tourada ao panteão das barbáries humanas, um museu de horrores onde repousam outros vestígios da nossa natureza mais primitiva e vil.
A perpetuação desta crueldade não é um acto de celebração da tradição, mas sim um doloroso lembrete de que ainda temos um longo caminho a percorrer na plena compreensão da nossa própria humanidade. E enquanto a arena continuar a ser tingida com o sangue de seres que gritam em agonia para uma plateia, será um testemunho vivo da nossa falha moral colectiva, um espelho que reflecte não a nossa grandiosidade, mas a nossa incapacidade de evoluir para além das sombras do nosso passado cruel. É hora de despir a indiferença e vestir a armadura da empatia, da ética e da compaixão. Somente assim poderemos, verdadeiramente, reivindicar a nossa humanidade.
5 comentários
Passar directamente para o formulário dos comentários,
Sempre vi as touradas como nada mais e nada menos que egocêntrismo humano, e a falta de consciência sobre os seus actos.
O facto de o ser-humano, com toda a sua inteligência, e superioridade numérica, não ainda rivalizada em termos de inteligência, não se dirigir aos outros seres terrestres com respeito e empatia.
Este egocêntrismo humano é verificável não só nas touradas como também no seu comportamento em relação a outros animais, nas mais diversas situações, que inclusive levou à extinção de espécies, e outras tantas que estão em risco de desaparecer e desaparecem TODOS OS DIAS.
Juntando aqui um pouco de ficção científica, a propósito deste assunto, isto faz-me lembrar de certo modo o filme “The Predator” com o conhecido actor Arnold Schwarzenegger, onde o “Predador” visita o nosso planeta e o usa como se fosse a sua arena, pois este sabe de ante-mão que os seres-humanos são capazes de se defender, embora também saiba que estes não sejam capazes de o rivalizar eficazmente em termos tecnológicos e em inteligência. Há aqui uma clara desproporcionalidade. E ele sabe disso…
Atrevo-me a dizer que hipoteticamente, se isto acontecesse na vida real, e um “Predador” fizesse isto, iria ser um “wake-up call” para alguns humanos, e os fizesse repensar no seu modo de vida, e como tratam os outros animais os quais consideram na sua maioria “Inferiores”.
Ou talvez não…talvez a estupidez humana em muitos casos seja inerente.
Infelizmente, mesmo assim (com o Predator), não me parece que existisse esse wake-up call. Só nos sentiríamos injustiçados. Mas não fazíamos a reflexão sobre as nossas próprias injustiças… 🙁
Infelizmente, me vejo tentado a concordar com o seu argumento. Raramente olhamos para o sofrimento alheio mas carregamos em nosso âmago o desejo incontrolável de que os outros enxerguem o nosso sofrimento; ao invés disso, o que recebemos em troca deles é o mesmo desdém com nosso sofrimento que damos ao sofrimento de um touro em uma tourada, por exemplo.
Sou pela liberdade. Por isso, a tourada em si não me choca. Fazia era algumas, pequenas, modificações.
Os cavalos não querem lá estar. São obrigados. Por isso, retirava os cavalos do espetáculo.
Os touros também claramente não querem lá estar. Por isso, também os retirava.
Quem quer lá estar, aparentemente, são os cavaleiros, os toureiros e a audiência.
E, por mim, têm liberdade para isso.
Assim, se querem lá estar, promovia esse espetáculo, de um contra um, entre eles.
Por exemplo, colocamos um toureiro contra um cavaleiro (a pé). Um tinha bandarilhas e o outro só fugia. E depois iam trocando. Até por, misericórdia, ter-se que matar um deles.
Pronto, cumpria-se a tradição, toda a gente tinha liberdade para escolher se queria estar lá, e a audiência certamente que regozijava (a não ser quando tivesse que ir para a arena).
Assim, reformulava-se uma antiga tradição, o dos circos romanos, mas agora só de pessoas livres 😉
Tradição + liberdade + espetáculo/arte: os 3 argumentos que normalmente dão, estavam assegurados 😛
E junto outra palavra: coragem. Queria ver, daqueles que defendem as touradas, quem teria coragem de ir/participar num espetáculo desses.
Author
Ora bem, aqui está uma bela de uma iniciativa a sugerir aos grandiosos mestres da Tauromaquia. Tirar os animais, e metê-los a emular a tradição com os próprios corpinhos. Yep :=)