Quando estive em Portugal, vi que existia um novo programa de dating.
Na televisão SIC existe uma versão portuguesa do programa “Stranded on Honeymoon Island“: chama-se Casados no Paraíso (neste link, podem ver o que se foi passando pelo programa).
O programa junta um homem e uma mulher que se casam quase à primeira vista (após um speed dating) e depois vão passar algumas semanas para uma ilha tropical abandonada.
Deixo a crítica da Joana Marques no programa Extremamente Desagradável, aqui.
Porque trago este programa aqui ao blog?
Porque fiquei chocado com a quantidade de pseudos que a SIC decidiu convidar para o programa.
Em 5 casais, 3 deles têm mulheres que acreditam (crenças pessoais) em tretas pseudo-científicas.
Ou seja, a maioria das mulheres do programa disseminam inverdades pela população portuguesa.
Desta forma, um programa de entretenimento vira uma promoção de formas enganadoras de pensar, de modo a que os portugueses sejam levados por essas tretas.
Como se pode ver na página do programa, existe uma noiva chamada Elsa que se diz “coach espiritual“. O que traduzo como: “gosto de dizer que ajudo pessoas sem ter qualquer formação formal psicológica para isso”. Se os auto-proclamados coaches não têm formação académica em psicologia, mas dizem que podem tratar as pessoas psicologicamente só porque “leram uns livros”, isso não constitui o crime de usurpação de funções?
Quando ela diz que o marido e todas as outras pessoas têm palas que não lhes permite “ver a verdade”, a mim salta-me logo o “alerta pseudo”. Porque esta arrogância mostra pessoas que assumem que a verdade é algo subjetivo, e que só elas é que são iluminadas ao ponto de a terem visto. Mas os exemplos que ela dá é que me fazem “subir as paredes”. Segundo ela, as pessoas dão-se bem ou mal, dependendo das suas vibrações, que dependem da frequência. O marido até lhe pergunta de forma jocosa se ela ouve AM ou FM. É que frequência e vibração são termos da Física. Ela usa esses termos de forma deficiente: com significados que não têm a ver com esses termos. Era o mesmo que eu estar a falar de um cão, e chamar-lhe cadeira. Um outro exemplo que ela dá é o vento, que ela diz ser um assunto da metafísica, já que não se consegue ver o vento mas consegue-se sentir os seus efeitos. Ora, o vento não é um assunto metafísico: é estudado pela meteorologia, que emprega vários conceitos da física para estudar os processos atmosféricos. O vento é somente uma movimentação do ar, de uma área com maior pressão para uma área com menor pressão. O vento é um fenómeno físico! Não é nada metafísico. Além disso, o vento é detetável: não é preciso a pessoa ver com os olhos para detectar objetos. Temos várias sondas no sistema solar que detectam objetos através de infravermelho, ultravioleta, rádio, etc. Ela também não vê as ondas-rádio, e elas existem. Porque estão noutro comprimento de onda que são detetáveis! Não são precisos os olhos para a Física detectar. Ou seja, claramente, ela não sabe do que fala: atira exemplos como o vento para enganar quem não têm noções básicas da ciência e do mundo que nos rodeia.
Num outro vídeo posterior, ela diz que a física quântica é espiritualidade. Não é! A física quântica é física! Tal como está no nome! A física quântica, além de muito conhecimento de física, tem obviamente muita matemática. Só quem tem formação formal em física, e nomeadamente doutoramento em física quântica é que a percebe realmente. Não são “coaches” que percebem de física quântica. Alguma tecnologia que utilizamos diariamente contém conhecimento da mecânica quântica. Como os nossos telemóveis/celulares. No entanto, nós nem nos damos conta disso. Porque a física quântica tem muita matemática que não entendemos. Mas essa ciência funciona! No entanto, nada disto tem a ver com espiritualidade. É física, pura e dura. Ela também disse que a física quântica diz que as pessoas são imortais, porque as pessoas são uma extensão de deus. Isto é treta! A física quântica é física e não religião! Não é religião quântica, é física quântica! No seguimento, ela acrescentou que o Universo não existe, sendo somente uma projeção da nossa mente. Mais uma vez, isto é pura treta para enganar quem não tem qualquer noção de ciência. Por fim, ela diz que tudo são átomos. O problema é que a física quântica não é ao nível dos átomos: isso é a física atómica! São escalas diferentes. A física quântica lida com partículas subatómicas, em quantidades de quanta.
O seu discurso está cheio de frases feitas, supostamente espirituais, com palavras “muito bonitas e complexas”, mas que na prática, quando se juntam as palavras, as frases não dizem nada. São as típicas frases de Barnum, que são tão gerais que se aplicam a qualquer pessoa e a qualquer situação, não servindo assim para nada em específico. É o fast food da literatura, com self-service: a pessoa interpreta como quiser – são interpretações “à discrição“.
Ela passa o tempo a ler um livro (Um Curso em Milagres) que ela assume ser a sua Bíblia, provando que se está na presença de uma mera crença religiosa. Percebe-se que é o tal manual de frases feitas, supostamente muito profundas, mas que não sobrevive a um exame de racionalidade: mais uma vez, as frases não dizem absolutamente nada: esta junção de palavras que resultam num conteúdo vazio pode ser feito em vários sites (exemplo: neste website).
Por fim, ela fala muito/demasiado sobre essas coisas, a “tentar vender” os seus cursos, como é explicado aqui. Pelas críticas que li ao programa (aqui), ela gosta muito de se ouvir, mostrando-se egocêntrica (não faz perguntas ao homem) e demonstrando não ter o self-aware e a empatia que tanto apregoa.
Como se pode ver na página do programa, existe uma outra noiva, Cláudia, que se apresenta como terapeuta holística. No entanto, ao contrário da Elsa, a Cláudia não tentou impôr a sua forma de pensar nos outros, raramente falando sobre isso (falou aquando do presente de casamento): ou seja, não foi para o programa “vender essa pseudociência”.
Mais uma vez, tal como para os coaches, qualquer pessoa pode dizer que é isto (terapeuta holística), porque não existe formação formal de anos para se tirar cursos reconhecidos. Assim, dizer que é isso não vale nada (em termos de reconhecimento formal). É a mesma coisa que eu dizer que sou advogado, sem nunca ter estudado direito numa faculdade e nunca ter feito exames reconhecidos pela sociedade para realmente ser advogado. Como qualquer pessoa pode dizer o que quiser, então não se deve acreditar em ninguém que o diz ser, obviamente.
E porque não há cursos formais nisto? Porque as pseudociências são aldrabices à luz do conhecimento científico/objetivo.
A noiva que me “chateou mais” é a que menos “culpa social” tem: porque, aparentemente, não vende cursos disso. No entanto, “chateou-me” porque diz respeito diretamente à minha área.
Como se pode ver na página do programa, Joana é um outro tipo de crente. Segundo ela, ela tinha um grupo no Facebook com dezenas de milhares de membros. Nesse grupo, partilhavam todo o tipo de conspirações. E Joana acredita em muitas delas.
Partilhavam, por exemplo, notícias sobre a Terra ser plana, sobre o 11 de Setembro (ataque às torres em New York) ter sido feito por autoridades norte-americanas, sobre astrologia, sobre os Ancient Aliens (acreditam no fraudulento Erich von Daniken), etc.
Tudo isto são crenças, que é o oposto de racionalidade.
Nomeadamente sobre Ancient Aliens, ela explica ao seu noivo que as pessoas no mundo antigo, quando viam luzes no céu, não entendiam o que era, e por isso acreditavam que eram deuses – daí nasceram as diversas religiões. A origem das religiões não foi assim, mas não me vou alongar. No entanto, o que me fez focar nela foi ela acreditar que os OVNIs são pilotados por seres extraterrestres.
Ela afirma que as civilizações antigas estavam erradas ao interpretarem os OVNIs como vindos de deuses, mas ela própria não consegue fazer uma auto-reflexão em que perceba que ela comete o mesmo erro: ela vê imagens de luzes no céu no Facebook e imediatamente acredita que são OVNIs pilotados por deuses extraterrestres que estão muito interessados nos Humanos. A forma falaciosa de pensar é a mesma. A linha de raciocínio é a mesma.
O que me chateou mais foi ela ter dado um argumento falacioso que está incrivelmente disseminado pela população. Ela explicou porque acredita em OVNIs: porque seria muito egocentrismo pensar que somos os únicos no Universo.
O problema, como já expliquei várias vezes, é que a forma dela pensar é que é egocêntrica. Sim, como ela disse, o Universo é enorme e poderá existir vida em todo o lado (como eu explico várias vezes nas minhas aulas e palestras). Mas não, eles não têm de nos visitar! Essa forma de pensar assume que nós somos muito interessantes ao ponto dos deuses extraterrestres estarem muito interessados em nós. Isto mais não é do que uma religião disfarçada de astrobiologia. Essa forma de pensar egocêntrica assume que somos muito especiais no Universo. Não somos! O Universo é muito grande, e nós somos somente um grão de poeira.
Além disso, assumir que eles vêm cá em naves mecânicas do nosso século XX é mais uma vez assumir que nós somos a medida do Universo: que num Universo gigantesco nós é que temos a tecnologia que os ETs desejariam ter (similar à nossa).
E por último, essa forma de pensar assume que eles são humanoides como nós e têm atitudes, desejos e comportamentos similares a nós. Mais uma vez, num Universo gigantesco, assumimos que os “deuses” têm de “ser feitos à nossa imagem”. Repito: isto é pura religião, que se baseia no nosso desejo de sermos muito importantes no Universo. Isto é geocentrismo psicológico.
Já para não falar que isto demonstra uma total falta de criatividade para pensar em extraterrestres.
A ironia é que ela afirma que lhe faz confusão falar com alguém que não consegue “pensar fora da caixa”. O problema é que as ideias dela são totalmente “dentro da caixa”. Os extraterrestres dela são os tradicionais deuses, humanóides, e aqueles que lhe foram passados por Hollywood. Ela não consegue “pensar fora da caixa”. Ela não consegue pensar que as medusas, formigas, polvos ou mosquitos, por exemplo, são formas alienígenas mais prováveis que humanóides. E no entanto, continuam a ser baseados em vida terrestre. Ela não consegue pensar em extraterrestres verdadeiramente alienígenas para ela. Por isso, de acordo com ela, devia-lhe fazer confusão a sua própria forma limitada de pensar.
Ela devia querer saber em vez de somente acreditar em pseudo-ideias sobre extraterrestres. Ela devia tentar alargar a sua mente às potencialidades científicas sobre como poderão ser os extraterrestres, em vez de ficar fechada no seu loop de pensamento, convivendo (incluindo digitalmente) somente com pessoas que têm a mesma crença e que reforçam aquilo que ela já pensa.
Concluindo: ao contrário do que ela assume, as suas ideias provam que ela pensa de forma muito egocêntrica sobre extraterrestres, nunca sequer refletindo que num enorme Universo, potenciais civilizações extraterrestres avançadas podem ser muito diferentes de nós e até nos podem considerar irrelevantes, insignificantes.
Notem que estas pessoas não são “especiais” na sua forma de pensar. Neste programa, terem estado estas pessoas ou potencialmente outras, provavelmente trariam erros de pensamento semelhantes. Porque estas concorrentes são meros exemplos de uma generalização das ideias de grande parte das pessoas na nossa sociedade.
Os estudos mostram, por exemplo, que a forma de pensar da Joana é maioritária na sociedade: as pessoas pensam de forma muito limitada e demasiado aculturada quando refletem sobre extraterrestres.
Não critico a existência destes dating shows como programas de entretenimento, apesar de terem uma taxa de sucesso de junção de pessoas inferior à dos amigos dessas mesmas pessoas.
Mas critico o facto da televisão disseminar tretas, próprias de quem não investiga os assuntos.
Quando essas tretas dizem respeito à minha área, obviamente que fico irritado. É o mesmo que um eletricista ouvir dizer que a eletricidade não existe, ou um pedreiro ouvir alguém afirmar que acredita que as rochas são coisas esponjosas trazidas por extraterrestres. Claro que o pedreiro iria ficar irritado, considerando essas crenças imbecis.
Realço que o grande problema disto não são as pessoas. Elas inscreveram-se num programa de televisão, onde falam sobre si e sobre as suas crenças. Isso é legítimo.
O problema é uma televisão utilizar um programa de grande difusão (com centenas de milhares de espetadores) para promover tretas e conspirações, como se fossem uma “coisa normal” que todas as pessoas deveriam acreditar.
A racionalidade, as evidências objetivas, dizem-nos que tudo isto é treta. Como diria Umberto Eco, no passado estas pessoas seriam consideradas as “idiotas da aldeia“, e não influenciariam outras pessoas mais suscetíveis a caírem em tretas. No entanto, agora, a televisão dá-lhes palco, para que estas tretas sejam difundidas por mais gente. Sendo muitos espetadores vulneráveis a fraudes, esta é uma forma de ajudar a que as pessoas sejam enganadas por parvoíces.
As mentiras, as conspirações, as vigarices, nunca deveriam ser promovidas por responsáveis televisivos, porque eles sabem que a literacia funcional da população é baixa, e assim muita gente irá sair defraudada.
Porque a SIC não cria um programa popular sobre a ciência da astrobiologia em vez de promover crenças absurdas em algo?
Não seria melhor ensinar as pessoas com conhecimento objetivo dos assuntos, em vez de as enganar com crenças pessoais?
Deixo o desafio às televisões…
1 comentário
O problema é que a mídia ousa louvar um único deus (o famoso “papel-moeda”). Qualquer emissora de rádio e televisão – e qualquer mídia impressa – respaldará esse tipo de pensamento pois as pessoas, egocêntricas como são, pagam um horror para ter suas crenças “respaldadas”. Ora, isso não é respaldo, isso é apenas um “massagear de egos” que não faz sentido algum (mas rende uma fortuna a qualquer veículo de mídia, impressa ou irradiada/televisionada).