À sombra de estrelas tão distantes que a luz delas ainda não atingiu o nosso planeta, e pode nunca atingir, transcorrem as ferozes batalhas humanas; dramas carregados de paixões mesquinhas e ideologias calcificadas, agitadas em solo manchado pelo vermelho perene do sangue inocente derramado.
Nas terras divididas de Israel e da Palestina, os ecos de um antigo rancor ressoam por ruas e casas, multiplicando as cicatrizes da alma e do corpo, como se o próprio solo que pisamos fosse o palco final de um duelo entre deuses esquecidos.
Mas, e se erguêssemos o nosso olhar para além deste teatro doloroso, e o dirigíssemos ao “Pálido Ponto Azul” que Carl Sagan imortalizou como a nossa morada comum? Talvez, então, pudéssemos começar a vislumbrar a insignificância das nossas divergências sectárias, medindo-as à escala do infinito.
Este artigo é uma incursão através dessa perspectiva estelar, uma meditação que aspira a transcender as fronteiras da geopolítica, para examinar os princípios fundamentais que devem guiar a nossa coexistência. Aqui, ciência e humanismo convergem para oferecer uma reflexão que, se ouvida e lida, poderia ser a melodia ressonante de um futuro mais promissor, um poema épico em como viver uma boa vida.
O visionário Carl Sagan, no seu livro Pale Blue Dot, ofereceu ao mundo uma reflexão de rara profundidade, inspirada por uma fotografia que ele mesmo propôs que fosse tirada pela Voyager 1, em 1990.
À medida que a sonda se distanciava para além das fronteiras do nosso sistema solar, a sua câmara foi ajustada para capturar uma imagem da Terra; uma imagem que nos revelou não mais do que um minúsculo ponto azul claro na escuridão cósmica.
Este gesto aparentemente simples, tornou-se uma sinopse visível da nossa fragilidade e da nossa insignificância no universo.
“Olha novamente para aquele ponto. É aqui. É o nosso lar. Somos nós. Nele, todos aqueles que amas, todos os que conheces, todos aqueles de quem já ouviste falar, todos os seres humanos que alguma vez existiram, viveram as suas vidas. O agregado do nosso júbilo e sofrimento, milhares de religiões confiantes, ideologias e doutrinas económicas, todos os caçadores e recolectores, todos os heróis e cobardes, todos os criadores e destruidores de civilizações, todos os reis e camponeses, todos os jovens casais apaixonados, todas as mães e pais, crianças esperançosas, inventores e exploradores, todos os professores de moral, todos os políticos corruptos, todas as “superestrelas”, todos os “líderes supremos”, todos os santos e pecadores na história da nossa espécie viveram ali — num grão de pó suspenso num raio de sol.
A Terra é um palco muito pequeno numa vasta arena cósmica. Pensa nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores para que, em glória e triunfo, pudessem tornar-se os senhores momentâneos de uma fracção de um ponto. Pensa nas crueldades sem fim cometidas pelos habitantes de um canto deste píxel sobre os habitantes de algum outro canto, quão frequentes são os seus mal-entendidos, quão ávidos estão em matar-se uns aos outros, quão fervorosos são os seus ódios.”
Neste contexto, Sagan transcende a sua identidade de astrónomo para se tornar um filósofo da condição humana. E, com uma única sentença, ele consegue capturar a espantosa incongruência entre o nosso solipsismo inato, e a nossa ínfima presença no cosmos. Esta discordância serve como um alerta incisivo sobre a futilidade dos nossos conflitos terrenos, sobretudo quando ponderados à luz da escala incomensurável do universo.
A efemeridade da existência humana, confinada a um pequeno ponto no vasto espaço interstelar do cosmos, deveria incitar-nos a uma união solidária da nossa humanidade comum. É aterrador que, ao invés disso, manchemos constantemente esta frágil realidade com rios de sangue em disputas que, na escala cósmica, são tão insignificantes quanto nós próprios.
A crueldade com que ocupamos um fragmento deste pálido ponto azul, como se fôssemos os soberanos de um universo inexplorado, é a prova máxima da nossa visão limitada partilhada.
Aqui estamos nós, mamíferos a meio cromossoma de distância de sermos meros macacos, perdidos à deriva num pedaço minúsculo de um cosmos inconcebível, ainda prontos a matar e morrer por visões limitadas e fronteiras imaginárias. Se considerarmos o mundo através da visão de Sagan, a persistência dos conflitos, como o que assola Israel e a Palestina, adquire contornos não apenas de tragédia, mas de uma quase inimaginável futilidade.
Aqui jaz a vastidão do nosso potencial humano, desperdiçado na disputa por um nada, num palco tão grandioso que o nosso drama mal merece uma menção.
O apelo à razão e ao humanismo não é apenas uma necessidade moral, mas um imperativo existencial. Está na altura, diria, de reconhecermos que a nossa sobrevivência enquanto espécie está inexoravelmente ligada à nossa capacidade para transcender as pequenas diferenças que nos dividem. Se continuarmos a permitir que dogmas arcaicos e sectarismos trivializem a vida humana e a profundeza da nossa experiência, então, certamente, seremos relegados ao esquecimento cósmico.
A ciência, com o seu poder de iluminar as sombras da ignorância, deveria ser o nosso guia nesta jornada rumo ao entendimento. Já nos deu as ferramentas; só nos resta empregá-las. Optemos, então, por um curso que celebre a vida em todas as suas manifestações. Um que nos veja não como inimigos divididos por crenças e fronteiras, mas como companheiros de viagem num breve momento de consciência, no limiar de um universo que aguarda a nossa exploração.
Resta-nos fazer uma escolha; iremos continuar a ser os arquitectos da nossa própria destruição, ou seremos os curadores de um legado que ressoará através do infindável silêncio do espaço-tempo?
Este é o desafio da nossa era, a verdadeira cruzada, a única realmente digna da nossa espécie.
Escolhamos sabiamente.
Na vastidão indiferente que nos rodeia, onde as estrelas dançam um eterno bailado de luz e escuridão, a nossa frágil presença assume um significado ainda mais fugaz quando maculada pelo veneno divisivo da religião. Este elixir de dogmas e mitos, que tantas vezes se propaga como uma doença através das gerações, sufoca a beleza da descoberta e a verdadeira glória da condição humana.
Mas, se abandonarmos as correntes do obscurantismo e nos voltarmos para o foco da razão, talvez então possamos construir uma epopeia de existência que, embora breve, ressoará de forma mais pura e eterna nos anais do universo. Que a nossa escolha seja essa, um compromisso irrevogável com a ciência, o racionalismo e a ética, como o único antídoto válido contra a malignidade da irracionalidade que ameaça corroer o tecido da nossa humanidade.
Assim, mesmo que sejamos não mais do que um suspiro na eternidade cósmica, que esse suspiro seja o mais lúcido e harmonioso possível. É a nossa única hipótese.
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