O luto súbito de algumas centenas de pessoas tem sido desrespeitado por alguns astrólogos portugueses e estrangeiros. Os praticantes destas artes divinatórias foram, uma vez mais, levianos perante uma situação de tragédia, aproveitando-se de alguns elementos divulgados pelas autoridades para chegarem a conclusões rebuscadas sobre o desfecho do voo MH 370. Contudo, foram aparecendo mais notícias e os astrólogos começaram a acumular erros grosseiros. A conclusão não pode deixar de ser apenas uma: nem com batota conseguem acertos razoáveis.
Da forma sensacionalista que lhes é tão cara, sobrepuseram o destino de 200 toneladas de alumínio ao do de mais de 200 passageiros infelizes num claro contra-senso ao que a própria doutrina astrológica preconiza: as cartas natais como determinantes do futuro de cada indivíduo. Nem seriam necessários mais argumentos se esta ideia fosse posta na balança do raciocínio. Aliás, a tragédia até nos trouxe um conceito novo: a hora de nascimento do avião (descolagem). Uma doutrina imparável: sempre que for preciso, invente-se um novo axioma! Para ‘ciência’ antiga parece ter paradigmas demasiado voláteis, o dom da renovação rápida e a capacidade de atropelo dos ‘conhecimentos’ anteriores.
A astrologia, na sua essência, é uma doutrina caduca e profundamente egoísta: coloca o indivíduo no centro de um universo geocêntrico e tudo o que se passa à sua volta num palco preparado apenas para ele. As próprias estrelas não passam de gambiarras para o self, carregado de gravidade, passar a ser o actor principal em todas as ocorrências do universo.
É uma crença ancestral: o Sol, a Lua, os planetas e as estrelas foram sempre espectáculos quase quotidianos e todos os calendários foram desenvolvidos com base na observação dos seus movimentos. Se devemos aos corpos celestes a contagem do tempo talvez tenha sido natural atribuir-lhes um papel decisivo sobre o nosso comportamento ou sobre o nosso futuro. Hoje em dia sabemos que não é assim: o bisturi do conhecimento separou para sempre a astrologia da astronomia.
Os praticantes de astrologia utilizam alguns conhecimentos de astronomia de forma a revestir a sua doutrina de predicados que lhe são totalmente alheios, como o rigor, a consistência e a seriedade. As cartas utilizadas parecem envolver cálculos complicados e geometria apenas ao alcance de quem tenha estudos profundos: é uma forma de os astrólogos infundirem algum temor e respeito em quem os consulta, uma espécie de apelo à autoridade subvertido (para os mais curiosos vale a pena ler alguns artigos credenciados de psicologia sobre o tema).
A ciência – não vale a pena apelidá-la de verdadeira, é um adjectivo redundante, assim como o ‘convencional’ na medicina – assegura-nos que na natureza existem quatro tipos de forças: gravítica, electromagnética, nuclear forte e nuclear fraca. Estas duas últimas actuam apenas a nível microscópico, desvanecendo-se muito rapidamente com a distância. Nenhuma delas pode ser observada, nem mesmo com os microscópios mais sofisticados.
Quanto às que podemos observar: estamos continuamente sujeitos à gravidade, a força que o empurra para a cadeira enquanto lê este texto (em rigor científico, a reacção da cadeira à força gravítica que sobre ela é exercida por si). Suspenda a leitura por uns momentos. Consegue senti-la? É forte, omnipresente e perfeita. Dá algum trabalho levantar-se, não dá? Consegue evitá-la ou fugir-lhe? E imaginar o que seria o seu mundo sem essa força matriz por baixo de si? Talvez seja difícil. E conhece a origem dessa força: a massa da Terra, claro.
O leitor também exerce força gravítica sobre a Terra, mas relativamente à que a Terra exerce sobre si é completamente desprezável. Uma piada antiga: se todos os chineses saltassem ao mesmo tempo a Terra daria um ‘pulo’. Acredita? As contas não são complicadas de fazer e podemos deixá-las para outra altura. Mesmo que o nosso planeta fosse dez vezes mais povoado e todos saltássemos ao mesmo tempo na mesma zona não conseguiríamos fazer com que a Terra se desviasse um milímetro da sua órbita.
A força gravítica decresce muito rapidamente com a distância. A lengalenga velhinha que os nossos pais e avós aprendiam na escola sobre gravitação rezava mais ou menos o seguinte: “Matéria atrai matéria na razão directa do produto das massas e na razão inversa do quadrado da distância”. Pode parecer uma formulação arrevesada, mas o significado é simples: a força aumenta com o aumento da massa (se for aumentada a massa a um dos corpos, a interacção gravítica será superior. Todos sabemos que pesaríamos muito mais em Júpiter que na Terra).
O aumento dessa interacção é directamente proporcional ao aumento de massa. Se a massa for 3 vezes superior, a força resultante será 3 vezes maior: simples e cristalino. Mas Júpiter tem 318 vezes a massa da Terra. Assim sendo, deveríamos pesar 318 vezes mais em Júpiter que na Terra, mas não é o que sucede: o nosso peso seria ‘apenas’ 2.4 vezes superior e a explicação é simples: a distância da superfície ao centro de Júpiter é bastante maior que no caso da Terra (se Júpiter e a Terra tivessem o mesmo diâmetro a conta seria mesmo essa: 318 vezes mais). A magnitude do aumento é bastante diferente e com este exemplo podemos ficar com uma ideia do que significa realmente a ‘força’ dos planetas sobre nós.
A Lua, responsável pelas marés (que apenas ocorrem pelo facto de os oceanos serem comunicantes – maré cheia num sítio implica maré vazia noutro), não tem nenhuma influência sobre nós. Aliás, fazendo as contas devidas até tem: o equivalente a uma garrafa de água de 1.5 l a um metro de nós. É mesmo este valor, e se tiver dúvidas pode consultar os manuais de física e fazer as contas. A quantidade de pessoas que estiver no quarto onde decorre o parto tem mais influência sobre o recém-nascido que todos o planetas do Sistema Solar alinhados simultâneos a um eclipse do Sol.
A força electromagnética é responsável por todas as interacções que podem ser observadas no dia-a-dia, exceptuando-se as interacções gravíticas. Tal como sucede no caso da gravítica, tem um pormenor que arrasa as influências dos astros sobre nós: o quadrado da distância no denominador. E o quadrado cresce demasiado depressa para as pretensões da astrologia. Se ele não existisse até poderia haver alguma veleidade dos praticantes, rapidamente desmontada por uma multitude de argumentação racional que escusamos de elencar aqui.
Os astrólogos reclamam que os acontecimentos podem ter lugar em níveis variados de existência: mental, espiritual, material ou noutro qualquer. As abordagens da astrologia são multifactoriais e variadas, e com a argumentação das diferentes formas de interpretar, é possível justificar o facto de duas pessoas que tenham nascido no mesmo hospital à mesma hora apresentem características vincadamente distintas e que respondam de forma diferenciada aos arranjos e alinhamentos dos planetas. É uma resposta suficientemente confusa para impedir que a ciência consiga averiguar as suas pretensões, e a barafunda ainda aumenta se forem tomadas em conta todas as correntes da astrologia.
A guerra da ciência com as crenças já conta alguns séculos e o conhecimento científico não se compadece com omissões. As questões filosóficas e epistemológicas podem ser extremamente interessantes e gerar debates acesos sobre os assuntos que bem entendermos: duas pessoas concordam que a folha que têm à frente é branca. Mas pode colocar-se uma pergunta pertinente: será que os ‘brancos’ são iguais? O que é percepcionado como ‘branco’ para um poderá ser azul ou amarelo para outro. É possível e tem tudo a ver com percepções sensoriais. Ninguém pode garantir que isso não possa acontecer, mas não nos devemos precipitar numa conclusão esotérica. Se mostrarmos a mesma folha a milhares de indivíduos e todos disserem que é branca, podemos concluir (se procedermos a um estudo cruzado com outro objecto qualquer que suscite dúvidas quanto à sua tonalidade) que assim é. Ok, mas o que é o branco? Em termos rigorosos, corresponde a uma zona do espectro da luz visível. Se quiser saber qual, é fácil procurar.
Se não existisse nenhuma convenção não poderia sequer estar a ler estas linhas – a própria linguagem é convencionada! Aliás, nem sequer a comunicação seria possível. Que frase lê em baixo?
A LINGUAGEM É CONVENCIONADA
Tem dúvidas que alguém não leia o mesmo? Benditas convenções, sem elas poderíamos colocar tudo em causa, desde o ladrão que roubou a carteira da senhora à ordem do tribunal para a prisão do político trafulha.
O contributo da astrologia para a compreensão dos fenómenos celestes é incontestável. Conhecimento sobre conhecimento, convenção sobre convenção, deslumbramento após deslumbramento. A própria astronomia recorre com abundância às convenções astrológicas. É muito mais fácil dizer que qualquer fenómeno está a acontecer na ‘proximidade’ de Aldebaran no Touro do que fornecer um conjunto de coordenadas que pode não ser imediatamente intuitivo e que exija alguns minutos até ser compreendido, mesmo para os astrónomos experimentados. O legado cultural da astrologia é importantíssimo, as suas implicações na existência é que ainda estão muito longe da comprovação.
Quando é submetida à experimentação, a astrologia falha redondamente. A título demonstrativo, mencione-se um estudo recente, realizado na década de 1990 na Holanda, e que envolveu vários astrólogos com anos de prática. Oferecendo um prémio de 5000 florins (quantia considerável para a época), foi-lhes pedido, a partir de algumas informações sobre sete pessoas (que incluíam, obviamente, datas, locais e horas de nascimento) que se voluntariaram para uma experiência, que relacionassem a profissão e o temperamento dos sujeitos em causa. Um dos astrólogos conseguiu relacionar correctamente três, os restantes acertaram num sujeito ou em nenhum. É pouco, e as reticências da ciência são inquestionavelmente justificadas…
Se a astrologia fosse ciência, nos aeroportos passaríamos a ter astrólogos, e não técnicos de navegação e controle aéreo com milhares de horas de experiência. A história da aviação está repleta de heróis que dedicaram as suas vidas ao sonho mais antigo da humanidade: Otto Lilienthal, Wilbur e Orville Wright, Charles Lindbergh, Amelia Earhart, Chuck Yeager, Frank Whittle, Secondo Campini e muitos outros. Fulguram no nosso passado e ajudaram-nos a cumprir um sonho antigo. No rol dos heróis da aviação não aparece o nome de nenhum astrólogo. Quer pensar de novo no assunto?
Os pressagiadores da desgraça alimentam-se do medo que conseguem difundir nos outros, enquanto a ciência avança sem parar porque vai retirando temores do caminho da humanidade. É simples e cristalino. E o avião, uma invenção fabulosa com substrato científico (e não astrológico), continua a ser, de longe, a forma mais segura de viajar.
Pense em tudo isto e não se esqueça: quando apanha um avião não concorre a uma morte violenta…
3 comentários
O Ser Humano define-se pela cultura, e cultura é delírio.
Excelente artigo, apenas acrescentaria o seguinte:
A Humanidade possui um Ego enorme, construído em oposição à realidade e ao sofrimento.
O Ego humano tem sofrido várias feridas ao longo do tempo:
“Somos feitos à imagem e semelhança de Deus”, isto é, queremos ser Deus. Darwin provocou uma ferida egóica ao afirmar que humanos e símios são descendentes de um símio ancestral, ao invés de terem sido criados por Deus e à sua semelhança.
“A Terra é o centro do universo”, ou seja, queremos ser o centro. Na verdade todos nós já fomos o centro de tudo quando nascemos e fomos crianças. Éramos o centro do universo para os nossos pais e queremos desesperadamente continuar a ser sempre o centro.
Nicolau Copérnico inflige mais uma ferida ao Ego ao demonstrar que a Terra não está no centro do sistema Solar (nem de coisa nenhuma).
Com o Iluminismo decreta-se que o Ser Humano “passa a ser racional”. Freud desmonta essa crença e prova que o Ser Humano continua a ser profundamente irracional. No famoso iceberg da psicologia percebe-se que apenas 10% dos nossos processos mentais é consciente. O mesmo se aplica à razão. O motor humano não segue exclusivamente as regras da lógica, da razão ou da ciência.
Adivinha-se a próxima ferida Egoica: adoramos dizer que “somos a coisa mais complexa que o universo criou”. Ou seja, continuamos a desejar ardentemente ser especiais. De um dia destes descobrirmos inteligências mais avançadas no Cosmos (e adivinha-se que não será de todo impossível que elas existam), lá vai o Ego humano sofrer outra ferida.
Este conflito entre crentes e agnósticos é interessante, mas talvez seja necessário fazer esse exercício doloroso de olhar para a psique humana. Isso causa dor e desconforto, mas pode ser o caminho necessário para a elevação humana.
A natureza humana é profundamente delirante, e se queremos construir um Ser mais racional temos que fazer um esforço para compreender essa instância que é mais operativa do que a razão: o delírio”. Este é um campo por excelência para as ciências humanas e em particular para a antropologia.
Concluo, citando a este propósito uma frase de Freud:
“A ideia delirante é sustentada com a mesma energia com que uma outra ideia, insuportavelmente aflitiva, é rechaçada para longe do ego. Assim, eles amam seus delírios como amam a si mesmos. É esse o segredo. […] a referência a si próprio visa sempre comprovar a correcção da projecção.” (S. Freud, «Rascunho H», Anexo à carta a Fliess, de 24 de Janeiro de 1895, in J. M. Masson, 1986:108-113)
Saudações.
Excelente artigo, e excelente texto o seu Sérgio Caldeira. Permite-me copiá-lo para o Facebook?
Desculpe o atraso na resposta, que só agora li. À vontade.
Saudações cordiais
Sérgio Caldeira