Consumir informação sem pensar no que se leu não é diferente de comer demasiado depressa: fica-se com a sensação de barriga cheia, mas não se chega a apreciar a refeição. Seguem-se quatros exemplos que podem ajudar a colocar de sobreaviso quem consome notícias ou factos da Internet como se estivesse a trincar um hambúrguer.
1 – Um título é a notícia, mas nem sempre a notícia é o título
O clickbait é a versão web do título sensacionalista dos jornais: o objetivo não é fornecer ao leitor uma representação fidedigna da notícia, mas atrair visitantes e partilhas.
Por exemplo, os astrónomos captaram explosões rápidas em rádio que parecem seguir um padrão matemático. Ninguém sabe porquê. E embora a hipótese «extraterrestre» não apareça no documento original onde os cientistas apresentaram a descoberta, a esmagadora maioria dos sítios chamaram-na para o título. A respeitável Forbes nem sequer se preocupou em acrescentar um púdico ponto de interrogação. Porquê?
Ninguém sabe, portanto podem ser extraterrestres
Porque foram os jornalistas da New Scientist e do Huffington Post a perguntar aos cientistas pela possibilidade de se tratar de uma mensagem alienígena. Dado que ninguém sabe o que causa tais padrões matemáticos, seria estúpido negar a hipótese extraterrestre.
O que muitos se esqueceram de mencionar ao reproduzir as notícias é que tal hipótese se encontra em último lugar numa lista que inclui causas mais prováveis como, por exemplo, quasares, buracos negros ou satélites-espiões. Os únicos que colocam a hipótese ET mais perto do topo são, compreensivelmente, os cientistas do SETI (Search for Extraterrestrial Intelligence).
Um leitor esclarecido percebe que a intenção do título é gerar cliques, mas para a confraria de blogues e sítios dos chapéus de alumínio – capaz de mostrar vídeos do YouTube como «prova» e confundir tecnologia Adobe After Effects com tecnologia extraterrestre –, esta abordagem sensacionalista torna-se a única interpretação possível.
2 – Querer que aconteça não é o mesmo que acontecer
Tal como os títulos sensacionalistas do exemplo anterior, o jornalismo wishful thinking só precisa da ausência de negação para prosperar.
Considerem o seguinte exemplo: uma estrela gigante distante tanto pode explodir amanhã como daqui a milhares de anos. Sendo assim, raciocina o repórter, pode explodir numa data mais conveniente para o jornal – o ano em que dizem que o mundo vai acabar, por exemplo! Se ninguém pode negar 2012, então puxa-se a nossa data para título, ignorando as restantes milhares de milhões de datas possíveis.
Mais um sol para o fim do mundo
Os maluquinhos do calendário Maia e das teorias do Fim do Mundo tiveram em janeiro de 2011 mais um motivo para dizer a toda a gente: «Eu não vos disse?» E tudo porque o sítio australiano News.com.au entrevistou um professor de Física da Universidade de Southern Queensland e sacou-lhe umas declarações sobre a estrela Betelgeuse.
O repórter regressou à redação com um título formidável: uma estrela gigante vai explodir. Quando isso acontecer, a Terra vai ter dois sóis nos céus e as noites transformar-se-ão em dias. E tudo isto, acrescentava o jornal, pode ocorrer em 2012.
Brad Carter, o professor de Física, limitou-se a recordar um fenómeno astronómico conhecido há muito tempo: a estrela Betelgeuse – uma gigante vermelha da Constelação de Oríon – está a perder massa e encontra-se no fim do seu ciclo de vida. Estrelas como aquela morrem de uma forma espetacular: explodem e transformam-se em supernovas.
Prever o destino de Betelgeuse é puro raciocínio dedutivo: sabemos o que acontece quando uma estrela gigante chega ao fim da vida; Betelgeuse é uma estrela gigante; logo, sabemos como irá morrer.
Os dados que conhecemos corroboram estas conclusões – e é por isso que este raciocínio é possível.
O que não sabemos é quando isto irá suceder. Não temos dados suficientes para avançar uma década, quanto mais um ano específico. Podemos fazer a estimativa de que está prestes a acontecer por sabermos que está a perder massa; mas o «prestes a acontecer», à escala cósmica, pode abarcar 100 gerações humanas – ou mais.
Para deitar sal às declarações e reduzir a escala temporal à escala temporal das notícias, a hipótese 2012 foi avançada pelo jornalista e a pergunta feita a Brad Carter mais ou menos esta: «Poderá esta explosão acontecer já em 2012?» Sem reconhecer a malandrice da pergunta, Brad Carter admitiu a remota probabilidade.
Foi o suficiente para colocar um segundo sol nos céus da Terra em 2012, o ano em que «o mundo ia acabar».
3 – Dar comida aos pombos não faz de ti um especialista em Ornitologia
Desconfiem sempre quando a notícia de uma descoberta sensacional é feita por um «especialista», «cientista» ou grupo de «especialistas» ou «cientistas», sobretudo quando no artigo não é feita qualquer referência a qualquer especialidade ou ramo da Ciência.
Especialista em quê, virar frangos no churrasco? «Especialista» ou «cientista» são termos vagos utilizados quando o autor não faz ideia de quem é realmente a pessoa ou grupo de pessoas que está a citar. E tem a desvantagem de transmitir ao leitor uma aura de credibilidade científica a uma notícia sensacionalista, falsa ou demasiado especulativa. Se é um «especialista» ou «cientista», então deve saber do que está a falar, certo? Errado.
Os abomináveis especialistas
Considerem aquela notícia avançada pelo jornal de referência Público em outubro de 2011: «cientistas» descobrem «provas irrefutáveis» da existência do Abominável Homem das Neves.
A notícia teve origem num comunicado lançado pela Interfax às 20:07 do dia 9 de outubro. O comunicado original foi escrito em russo – e foram os media russos a pegar primeiro na história. O Pravda colocou-a na secção «Ciência» e titulou: «Provada em 95 por cento a existência do Yéti na Rússia».
A redação deste comunicado original baseou-se em informações fornecidas por autoridades administrativas da região de Kemerovo, no sul da Sibéria, local onde a «equipa internacional de cientistas» se juntou para participar numa «Conferência Internacional Yéti» que fora anunciada a 23 de Setembro.
Depois de lançada pela Interfax e nos media russos, a notícia foi traduzida e publicada pela Agência France-Press (AFP) sem acrescentar mais nada; da AFP espalhou-se pelos media ocidentais e uma enorme série de websites.
Entre o comunicado original e a notícia do Público, não existe qualquer sinal de que a história tenha sido minimamente contextualizada, interpretada ou posta em causa. O Semanário Sol, por exemplo, apresentou o seguinte título: «Cidade russa diz ter provas inquestionáveis da existência do Abominável Homem das Neves». Desta vez não havia cientistas, mas uma cidade cheia deles.
Na verdade existiram duas expedições. A primeira – vista pelos habitantes locais como uma fantástica promoção turística da região – fora liderada por um ex-campeão de pesos pesados, o pugilista Nikolai Valuyev. Um porta-voz de Valuyev anunciou que a expedição encontrara «vestígios» da presença da criatura: ramos partidos.
Ramos partidos era uma evidência importante (quem mais os poderia ter partido?), portanto não foi surpresa para ninguém que a expedição que se seguiu – e cujas descobertas foram o foco da notícia do Público – também tenha encontrado galhos e ramos partidos nas árvores, juntando-os à lista de «provas irrefutáveis».
Mas quem foi o «cientista» da história? A conferência internacional que deu origem à expedição foi organizada pelo «doutor» Igor Burtsaev, diretor do International Hominology Centre de Moscovo.
Não sabem o que é este centro? Aposto que fica mesmo ao lado do edifício do Centro de Estudos Criptozoológicos dos Gambozinos.
Vejam como este «cientista» citado na notícia do Público explica o Abominável Homem das Neves:
«Concluímos que estes seres são, em princípio, seres humanos porque eles até podem falar e comunicar com pessoas. O seu estilo de vida é semelhante ao dos animais. Não usam ferramentas, roupas ou fogo mas são bastante inteligentes. Possuem as suas próprias armas – capacidades paranormais que os ajudaram a sobreviver e competir com outros animais. Eles mudaram-se para outra dimensão – vida crepuscular e vida em locais dificilmente acessíveis.»
Tenham em conta as declarações deste lunático e considerem a notícia: «cientistas», «provas irrefutáveis»?
4 – Nem sempre uma imagem vale por mil palavras
Nada como a Internet para espalhar falsas interpretações e transformá-las em factos. Tudo o que é preciso é um olhar sobre um plano estático, dar-lhe movimento e fazer uma ganda filme – neste exemplo, uma bebedeira do então presidente russo, Dmitri Medvedev.
A imagem do fotógrafo alemão Peter Grimm, captada a 8 de Julho de 2009 em L’Aquila, na Itália, documenta um momento em que Medvedev – acompanhado pelo homólogo francês Nicolas Sarkozy e o anfitrião Silvio Berlusconi – se prepara para se juntar aos outros líderes para as tradicionais fotos de família.
A bebedeira de Medvedev
O que a fotografia nos mostra é um Medvedev numa pose cómica, como se estivesse com os copos e precisasse de ser amparado pelos outros dois para manter um equilíbrio digno. Para tornar a mentira ainda mais perfeita, Berlusconi foi apanhado a segurar no russo com ar apreensivo, como se tentasse proteger Medvedev de dar barraca à frente de toda a gente.
Só o facto de Berlusconi parecer o mais ajuizado dos três deveria ser suficiente para as pessoas desconfiarem da história que a foto conta, mas a verdade é que por todo o lado se falou da bebedeira de Medveded – um gozo que durou meses.
Nada como vermos outra foto da mesma sequência de acontecimentos (mas noutro ângulo e em momento diferente) para perceber o que preocupava Berlusconi: cumprir o horário estabelecido pelo rígido protocolo. Sendo ele o anfitrião da cimeira, é natural que estivesse preocupado em que tudo corresse sobre rodas e sem atrasos. Medveded faz o gesto de quem vai consultar o relógio, o que ajuda a perceber o que realmente se estava a passar.
Há outra boa razão para esta foto pegar tão bem: Medveded é russo. Russo, vodka. Bebedeira. Boris Yeltsin. Estão a ver esta imagem?
Não há nenhum elemento que permita identificar a nacionalidade desses dois senhores, mas experimentem pesquisá-la e verificarão que não há um sítio que os identifique como sendo de outra nacionalidade. Uma das legendas que encontrei dizia: «exemplo de yoga russo».
Que os russos bebem bastante vodka é um facto incontestável que parece preocupar cada vez mais as autoridades do país – adivinhem lá quem é o político que já se mostrou determinado em resolver o problema? Bingo, Medveded.
Últimos comentários