O Google publicou, recentemente, um doodle em homenagem ao 41º aniversário da descoberta de Lucy, o famoso fóssil de Australopithecus afarensis. Ao que parece, o doodle irritou algumas pessoas impermeáveis às ciências. Quando o Google fizer um doodle sobre Copérnico os defensores do geocentrismo também deverão se irritar, e quando o doodle for sobre Pasteur os defensores do movimento antivacinação irão protestar. Bem, eu também não gostei muito do doodle, mas por uma razão diametralmente oposta!
Antes de continuar, quero deixar claro que foi muito bom o Google ter feito esse doodle, eles estão de parabéns. Principalmente quando lembramos que se trata de uma empresa dos EUA, um país onde é grande o número de pessoas que acha que o aquecimento global antrópico é uma farsa, que vacinas causam autismo ou que a Terra tem apenas seis mil anos. Tentativas de defender o mínimo de alfabetização científica, como essa do Google, devem ser sempre louvadas.
O meu problema com esse doodle é de outro teor. Enquanto alguns se irritaram porque o doodle defende um facto da natureza tão cientificamente unânime quanto a gravidade, nomeadamente a evolução biológica, a minha crítica ao doodle se refere à maneira como a evolução é retratada: a “marcha do progresso”.
A “marcha do progresso” é uma ilustração famosa, feita por Rudolph Zallinger para a Time-Life Books em 1965. Indiscutivelmente, é a imagem mais icônica da evolução biológica para o público leigo (para o público acadêmico, eu creio que seja o “I think” de Darwin). Nenhuma outra imagem é tão prontamente associada à evolução biológica quanto a marcha do progresso e, certamente, nenhuma teve um número de redesigns e de paródias tão assustadoramente grande.
Mas a marcha do progresso, enquanto representação de um processo evolutivo em particular ou, pior ainda, enquanto representação de processos evolutivos em geral, tem vários problemas. Alguns deles são relativos ao design em si; outros, para sermos justos, não são problemas do design em si, mas sim da maneira como o cérebro humano o interpreta. Aliás, para sermos ainda mais justos, convém frisar que, segundo a filha de Zallinger, seu pai também não gostava muito do layout linear que acabou utilizando, e sabia que se tratava de uma representação inadequada da evolução.
Se você quiser um texto maior que os poucos parágrafos dessa breve postagem, aconselho a leitura de “Vida maravilhosa”, de Stephen Jay Gould, especificamente o capítulo “A iconografia de uma expectativa”. Já faz tanto tempo que li esse livro que nem me lembro mais (em detalhes) das críticas de Gould. Dessa forma, vou listar aqui as minhas críticas:
1 – Evolução não tem destino
O subtítulo do meu blog tem a citação de Maynard Smith, “sem destino e sem retorno” (no foresight, no way back). Evolução não tem destino, não há um “alvo” a ser alcançado. Mas a marcha do progresso traz fortemente às nossas mentes a ideia de que há um destino, um alvo, que o organismo da direita é o “objetivo” do processo evolutivo. Essa ideia é mais forte ainda pelo fato de o organismo no fim da marcha ser um ser humano moderno, conhecidamente propenso a um narcisismo patológico.
2 – Evolução não é progresso
Há uma forte associação entre a marcha e a ideia de progresso. Aliás, ela é conhecida exatamente como “A marcha do progresso”! Porém, evolução é “mudança”, e não progresso. Se um organismo com postura bípede originasse um descendente com postura quadrúpede teríamos, da mesma forma, um processo evolutivo. Mas a imagem nos dá a entender que a postura bípede é um progresso, o que nos leva ao próximo ponto:
3 – Não há “melhor” ou “pior”
Outra clara ideia que a imagem nos traz é que os organismos da esquerda são “piores” enquanto os da direita são “melhores”. Contudo, isso não faz sentido algum em evolução. “Pior” ou “melhor” depende de cada população, de cada ambiente e de cada situação em particular. O que é melhor, ter sangue quente ou sangue “frio”? O que é melhor, ter placenta ou não ter placenta? Depende…
4 – Organismos atualmente existentes não são ancestrais de outros organismos atualmente existentes
Na versão mais resumida da marcha (a parte de baixo na imagem original), o primeiro organismo é um Dryopithecus. Porém, eu me arrisco a dizer que a esmagadora maioria das pessoas leigas imagina reconhecer imediatamente um chimpanzé. Daí a achar que chimpanzés são ancestrais de seres humanos é um passo bem pequenininho. Chimpanzés e humanos compartilham um ancestral em comum, apenas isso, um não é ancestral do outro. Mas há algo ainda mais problemático: provavelmente, o próprio Dryopithecus não é nosso ancestral, o que nos leva ao meu último ponto:
5 – Não há como determinar com exatidão os ancestrais
Lucy, a razão de ser do doodle e deste post, nasceu, cresceu, se alimentou, teve tristezas e alegrias, dormiu, correu… enfim, foi um animal real, que existiu, isso é um facto. Tem um forte parentesco com a espécie humana moderna, isso é outro facto. Mas, muito provavelmente, ela não é ancestral dos humanos modernos, como não o são a maior parte dos hominídeos fósseis e das espécies representadas na marcha. Esse é um tema bem mais complexo, e para não me alongar em demasia eu vou te direcionar a esse outro texto do professor Morphy.
Apesar da marcha do progresso ser uma representação extremamente famosa e profundamente enraizada na concepção popular da evolução, a representação mais correta da história evolutiva dos organismos retratados por Zallinger seria um cladograma, com todos os organismos posicionados nos terminais. Uma árvore, uma estrutura ramificada, e não uma marcha linear.
Lembro-me de que, quando a editora me questionou sobre como deveria ser a capa do meu livro sobre evolução, eu falei algo assim: “Ponham qualquer coisa, um gatinho tocando piano, uma arte abstrata, uma foto de um avião decolando ou uma cachoeira numa floresta, podem por qualquer coisa… Só não ponham a marcha do progresso!”.
1 comentário
Muito bom!!!!