O Fascínio dos Números – Parte IV

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Já vos falei de números naturais, inteiros, racionais, irracionais, transcendentais, reais (primeira parte), imaginários, complexos, transfinitos, primos (segunda parte), perfeitos, amigos, e normais (terceira parte). Não esgotei o tema sobre conjuntos de números, mas opto agora dirigir a vossa atenção para certas individualidades: números que por algum motivo se distinguem dos outros por terem certas propriedades especiais. Passemos a conhecê-los.

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Começo pelo zero, 0. Este número surgiu depois dos outros por uma razão simples: se os números servem essencialmente para contar ou medir algo, para que precisamos de um número que representa o “nada”? Num sistema de algarismos com repetição simbólica, o zero como algarismo torna-se de imediato necessário, mesmo que pensemos que não precisamos dele para contar o “nada”. O que quero dizer com “repetição simbólica”? É fácil, para representar as unidades, as dezenas, as centenas, etc., usamos sempre os mesmos símbolos, isto é, os algarismos (de 0 a 9). Imaginemos que não tínhamos o zero, e que usávamos apenas os algarismos de 1 a 9. Como representar o número 9+1? 9 é o maior algarismo da nossa base, portanto passamos para as dezenas, e ficamos com uma dezena. O zero torna-se aqui necessário, para que o número resultante indique que temos uma dezena, e nenhuma unidade. Reparem que o nosso sistema numérico faz algo bastante simples: decompõe um dado número em potências de dez (sistemas com outras bases decompõem os números em potências da base respectiva).

Onde ‘a’, ‘b’, ‘c’ e ‘d’ são algarismos de 0 a 9.

Os babilónios foram talvez os primeiros a reconhecer a necessidade de ter um algarismo que tivesse o papel do nosso 0, pois na sua representação numérica usavam um espaço em branco para o representar. No entanto, tornava-se pouco claro contar os espaços em branco e com isso distinguir números como 201 e 2001 (nota: os babilónios não usavam estes símbolos numéricos, claro, mas a ideia é a mesma; na figura abaixo podem apreciar os símbolos que eles usavam). Por isso, mais tarde, inventaram mesmo de facto um símbolo para substituir os espaços em branco. Este sistema numérico remonta a cerca de 2000 a.C., mas não se sabe bem quando é que surgiu o símbolo para o algarismo zero. Note-se, porém, que não há indícios de que tenham reconhecido a necessidade do zero como número (ou seja, era apenas usado como algarismo para representar outros números).

babiNumerais babilónios.

Da História que sobreviveu até aos nossos dias, encontra-se o manuscrito de Bakhshali (uma região que pertencia à Índia, mas que agora faz parte do Paquistão). Este é um manuscrito extremamente importante, porque é o mais antigo documento que retrata a antiga matemática indiana. Não se sabe bem em que data foi criado, mas crê-se que tenha sido entre os séculos II e IV. Nele podemos ver o uso de aritmética, geometria e álgebra. Em particular, surge-nos também o zero a ser usado para problemas matemáticos (tomando por isso o papel de número e não meramente de algarismo).

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Numerais usados no manuscrito de Bakhshali.

Não obstante, o número zero só surge mais tarde de forma inquestionável em documentos do matemático indiano Brahmagupta (598-668), onde ele explica que um número subtraído a si próprio dá zero, e qualquer número multiplicado por zero dá zero.

(Note-se que o algarismo zero também foi descoberto/ inventado pela civilização Maia no século VII, no entanto, o zero que “conquistou” o mundo foi o indo-arábico, em conjunto com os outros algarismos indo-arábicos, como referi na parte I).

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Depois do zero, tenho que naturalmente falar daquele que todos vós sabeis ser um número incontornável: o pi (π).

O π é a primeira e talvez a única constante que a maioria das pessoas aprende na escola, e que relaciona o perímetro e o diâmetro de uma qualquer circunferência:

Perímetro = π x Diâmetro

Como sabem, o π é aproximadamente 3.14, o que significa que o comprimento da linha que delimita um círculo é sempre cerca de três vezes maior que uma “corda” que passe pelo centro da circunferência (recordo que uma “corda” é um segmento de recta que une dois pontos distintos situados na circunferência).

Ninguém inventou este número, ele emerge da geometria! Não apenas nos dá o perímetro, como também a área do círculo, a área de uma superfície esférica, o volume de uma esfera, e até mesmo para lá da esfera, em hipocicloides (ver figura abaixo), e muitas outras “estranhas” curvas e figuras geométricas. Mesmo para lá da geometria, o π surge-nos em imensas áreas da Matemática (em Teoria de Números; em íntima relação com os números complexos; etc.), e também na Física (relacionado com muitas quantidades que não aparentam ter qualquer relação com círculos).

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Hipocicloide de k=3, em que k é a razão entre os raios da circunferência maior e menor. Com outras razões encontram-se outros hipocicloides.

Também no caso do π, a História remonta aos babilónicos, os quais parecem ter compreendido que se tratava de uma constante, a qual estimaram em 3.125. Por volta do ano 250 a.C., o matemático e físico grego Arquimedes de Siracusa (287 a.C. – 212 a.C.) chegou à primeira estimativa matematicamente correcta conhecida de um intervalo para esta constante. De acordo com Arquimedes, π teria que ser um número entre 273/71 e 22/7.

Esta constante só foi baptizada como π em 1706 pelo matemático galês William Jones (1675-1749; amigo de Isaac Newton). Poucos anos antes, em 1673, o grande matemático alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) chegou a uma fórmula matemática para determinar o π:

Até o próprio Newton reconheceu o génio de Leibniz por tal descoberta (apesar das suas divergências que já referi neste artigo).

Trata-se na verdade de um caso particular da expansão em série para o arcotangente de um qualquer ângulo. Usando-se o ângulo de π/4 (corresponde a 45º), obtém-se a fórmula de cima. Curiosamente, o matemático escocês James Gregory (1638-1675) tinha chegado à mesma fórmula dois anos antes de Leibniz, mas não reparou no caso especial para obter o π. Mais recentemente descobriu-se que na verdade já antes de Leibniz e de Gregory, um matemático indiano do século XIV ou século XV tinha chegado à mesma fórmula (pensa-se que possa ter sido o grande matemático indiano Nilakantha Somayaji (1444-1544), que, entre outras coisas, estudou as expansões em séries numéricas de várias funções trigonométricas). É interessante notar que pelo menos estas três pessoas, em contextos culturais distintos, conseguiram chegar de forma independente ao mesmo resultado – uma prova do carácter universal da Matemática.

Note-se que a série numérica de cima converge, porque os novos termos adicionados são cada vez menores, pelo que, apesar da série continuar até ao infinito, pi é um número finito (ainda que representado por uma dízima infinita, ou seja, uma sequência infinita de algarismos). Actualmente, com a ajuda dos computadores, são conhecidos mais de um trilião de dígitos. Este ano (a 21 de Março de 2015), um indiano de apenas 21 anos, Rajveer Meena, conseguiu o record mundial do Guinness pela recitação de 70 mil dígitos. (Alegadamente, o japonês Akira Haraguchi terá recitado 100 mil dígitos em 2006, mas o record não foi reconhecido pelo Guinness.)

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Para concluir este artigo, refiro ainda sumariamente o número de ouro, do qual já falei em detalhe no artigo A Mitologia e a Verdade da Razão de Ouro, e para o qual remeto o leitor. Aqui acrescento apenas um detalhe que não mencionei nesse artigo: o “Olho de Deus”.

Na imagem de cima, tem-se um rectângulo dourado, ou seja, um rectângulo cuja razão dos lados é igual ao número de ouro. Como explicado no artigo supracitado, se removermos um quadrado ao rectângulo dourado, obtemos um outro rectângulo dourado mais pequeno, ao lado do quadrado (como na figura de cima). Este processo de retirar quadrados a um rectângulo e obter rectângulos semelhantes ao inicial (isto é, com a mesma razão entre os dois lados), só é possível com o rectângulo dourado. À medida que se continua o processo de remover quadrados aos rectângulos dourados mais pequenos, verificamos que estes convergem para um ponto. Este ponto coincide sempre com a intersecção da diagonal do rectângulo maior, com a diagonal do rectângulo “filho” (após remoção de um quadrado). A este ponto deu-se o nome de “Eye of God” (Olho de Deus). (Acrescento que pode-se ainda provar que a razão entre as diagonais consecutivas coincide também com o número de ouro.)

Na próxima parte, que será provavelmente a última, irei falar de outras constantes menos conhecidas, mas não menos fascinantes.

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Tradução: “Isso mesmo, decidi este ano dar um aumento de zero ao meu ordenado.”

3 comentários

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    • Nuno José Almeida on 03/02/2016 at 22:58
    • Responder

    “Mais recentemente descobriu-se que na verdade já antes de Leibniz e de Gregory, um matemático indiano do século XIV ou século XV tinha chegado à mesma fórmula (pensa-se que possa ter sido o grande matemático indiano Nilakantha Somayaji (1444-1544)”

    Era exactamente isto que tinha visto num de uns documentários e por isso tinha comentado na 1ª parte deste artigos.

    1. Pois, quando escrevi isto também me lembrei do que tinhas dito. Na primeira parte discuti o facto do pi ser transcendente, o que de facto só terá ocorrido no século XVIII.

        • Nuno José Almeida on 04/02/2016 at 10:39

        Pois, faz toda a diferença.

  1. […] artigo falei-vos de vários conjuntos diferentes de números (parte I, parte II, parte III), e na quarta parte foquei-me em alguns números em particular, nomeadamente o zero, o pi, e o número de ouro (ver […]

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