As moléculas de água confinadas em nanocanais exibem um comportamento de tunelagem quântica que espalha as posições dos átomos de hidrogénio num par de anéis ondulados.
Água: o solvente universal.
A água dissolve quase todas as substâncias, excepto as ditas apolares (na verdade há muitas substâncias desertoras designadas por hidrofóbicas), e mantém essa capacidade nesta sua recém descoberta fase da matéria (estado é uma designação correcta mas algo arcaica, hoje preterida por poder indicar falta de dinâmica, paralisia, e Leibniz, que inventou a palavra “dinâmica” talvez preferisse fase).
A tunelagem é o “super poder quântico” que permite que as partículas passem por barreiras microscópicas num único salto. É um dos mecanismos geradores da fusão nuclear, que transmuta átomos de hidrogénio para átomos de hélio e faz o nosso sol brilhar. Numa escala do quotidiano, é o mecanismo que permite que arrastem fotografias e ícones de aplicações no vosso telemóvel, na geração de “smartphones” destes aparatos. É a vetusta função “drag-and-drop” muito melhorada pela inovação.
Eis uma aplicação prática dos estudos de investigação pura dos mecanismos do Sol: o vosso “smartphone.”
Este estudo da água retida num cristal-esmeralda revela a tunelagem quântica das moléculas da água distribuída entre várias orientações, de modo que cada molécula está essencialmente em seis configurações de uma só vez. A investigação demonstrou, com experiências que recorreram à técnica de dispersão de neutrões, que a tunelagem faz com que os átomos de hidrogênio da água se espalhem em distribuições em formato de anel. Esta nova forma de água é uma estrutura mais simétrica com uma previsão de ter zero momentum (momento, ou movimento) de dipolo eléctrico – a propriedade que normalmente permite que a água forme ligações de hidrogénio e que tenha um bom desempenho como solvente.
A tunelagem quântica: da Natureza para as probabilidades na ponta dos nossos dedos.
A tunelagem é um mecanismo raro nas probabilidades do nosso dia a dia mas se virmos bem a luz do Sol ela é um dos mecanismos da fusão nuclear, portanto quando ingerimos um alimento ou vemos a luz do dia estamos a beneficiar desta função natural. Mas num aparato como um “smartphone” ou num computador normal, laptop ou tablet e na actual Internet das coisas, ou seja nos electrodomésticos, a tunelagem produz o efeito destes aparatos funcionarem.
Imaginem um sistema com 4 electrões dispostos numa nano-película muito fina (com a espessura dum fio de teia de aranha, depois 10 vezes mais fina. Depois outra vez 10 vezes mais fina, mesmo muito fina). Estes electrões têm barreiras que os impedem de se aproximarem uns dos outros. Desde logo a sua carga eléctrica -1 que os repele entre si, depois o vácuo ou os materiais que impedem o seu fluxo ininterrupto. Ora nessa película, que agora está exposta no monitor (“écran”) do vosso “smartphone,” é exercida a pressão dum gigante descomunal: a força dos vossos dedos!
Esta pressão obriga os simpáticos electrões a juntarem-se, pois é muito mais forte do que as intensidades das forças das barreiras. A probabilidade dos electrões se juntarem sem essa força externa é deveras pequena: aconteceria talvez uma vez ao longo de…3 vezes a idade do Universo. Ora ao aplicarem os vossos dedos no monitor, estão a transformar este sistema dum sistema de 2 dimensões para 3 dimensões. Pensando geometricamente isso é fantástico. Mas há mais: a probabilidde de se exercer tunelagem quântica sobe 10 vezes por cada décimo de nanómetro, e fica uma probabilidade superior à de não acontecer; ou seja, fica na prática eficaz.
Depois, ao saltarem as barreiras, os electrões quase se tocam (no Sol esmagam-se mesmo) e ficam tão perto uns dos outros que passam informação em catadupa de partículas virtuais, como numa corrente eléctrica fluída.
De facto, o que aconteceu foi que a pressão dos dedos transformou o sistema dum isolante eléctrico para um metal.
Os electrões assim dispostos nesta nova configuração geometricamente superior despoletam códigos binários de programação. Seta para cima, para baixo, para os lados, ver depressa uma enorme lista de e-mails, ver várias fotos em sucessão duma festa com os amigos, jogar jogos, trabalhar, colaborar, gerir informação, ensinar a Internet a funcionar pelas vossas ideias, opções, ou simples caprichos por que da vossa maneira é mais divertido.
Depois deste gigante descomunal tirar a pressão do monitor-película nanométrica, os electrões como que respiram de alívio (coitados, foram mesmo pressionados) e voltam às suas cavidades iniciais disparados pela repulsão da carga eléctrica igual. O sistema também volta de 3 para 2 dimensões.
Vejamos o que acontece na molécula da água sob muita pressão, dentro das pedras preciosas e semi-preciosas.
A tunelagem ocorre quando um objeto atravessa uma barreira sem ter energia suficiente para fazê-lo de forma clássica. Certas moléculas podem ter tunelagem entre orientações rotacionais. Um exemplo representativo é o grupo radical metilo (-CH3) , que apresenta um átomo de carbono ligado a três átomos de hidrogénio numa configuração de pirâmide simétrica. As forças eléctricas de átomos próximos geram uma repulsão que resiste a qualquer rotação em torno do eixo da pirâmide. No entanto, os hidrogénios podem ter tunelagem através dessas barreiras a partir de um canto da pirâmide para o próximo. Este salto específico acopla orientações rotacionais, causando uma separação observável do estado fundamental em níveis múltiplos com energias ligeiramente diferentes.
Recentemente, a espectroscopia óptica revelou a divisão de energia no espectro de terahertz de moléculas de água no berilo nas pedras preciosas, o que sugere que a molécula é movimentada entre os vários estados. A estrutura cristalina do berilo (Be3Al2Si6O18) (Be3Al2Si6O18) contém canais com secções transversais hexagonais que podem encurralar as moléculas da água. Os canais estreitam periodicamente em “gaiolas” com cerca de 0,5 nanómetros de largura por 0,9 nanómetros de comprimento, e que assim são apenas suficientemente grandes para uma molécula de água.
A divisão observada anteriormente sugeria que a água confinada estava a fazer tunelagem rotativa dentro dos canais, mas era necessário um teste mais directo. Agora, Alexander Kolesnikov do Oak Ridge National Laboratory (ORNL) no estado americano do Tennessee e os seus colegas realizaram uma série de medidas da dispersão de neutrões numa amostra de berilo contendo água.
No primeiro conjunto de experiências da equipa, usaram neutrões de baixa energia (escala MeV) da Spallation Neutron Source no ORNL para sondar o berilo cheio de água. A equipa identificou sete picos no espectro de dispersão associados com a água retida nos canais de berilo. Como a temperatura aumentou de 5 K para 50 K, estes picos diminuíram de altura, o que implica que provêm de transições moleculares relacionadas com a tunelagem quântica, ao invés das transições vibracionais, que teriam uma dependência da temperatura oposta.
Para explicar os seus resultados, os investigadores perfizeram cálculos de primeira ordem (cálculos simples, numa abordagem ab initio, ou seja baseada em conhecimentos já consolidados, sem recurso a modelos especiais ou a assumpções adicionais) e descobriram que uma molécula de água pode ocupar seis orientações simétricas num canal de berilo, de acordo com a estrutura cristalina conhecida.
Uma única orientação tem o átomo de oxigénio grosseiramente localizado no centro do canal, com os dois hidrogénios apontando para o mesmo lado (como num símbolo “<" ) na direcção de uma das seis faces hexagonais do canal.
Outras orientações apontam para outras faces, mas que são separadas umas das outras por barreiras de energia de cerca de 50 MeV. No entanto, essas barreiras não param os hidrogénios de exercerem tunelagem entre as seis orientações, dividindo assim a energia do estado fundamental em vários níveis.
Os investigadores descobriram que as diferenças de energia entre estes níveis foram consistentes com os sete picos observados nos dados obtidos na dispersão de neutrões.
As pedras preciosas ou semi-preciosas com berilo e moléculas de água confinadas, onde a nova fase da matéria está presente são: esmeraldas verdes, esmeraldas-vermelhas, água-marinha, morganita, berilo dourado, gochenita e heliodoro. Há ocorrências de Berilo em Portugal, associado ao tungsténio.
A equipa realizou uma segunda série de experiências com neutrões de alta energia provenientes da instalação de neutrões ISIS no Rutherford Appleton Laboratory, no Reino Unido. A partir destes dados, descobriram que a energia cinética dos hidrogénios é 30% inferior no berilo do que nas fases líquida ou sólida normais da água. A energia mais baixa implica que os hidrogénios são menos confinados, dado que a tunelagem os liberta para as seis posições em simultâneo. A densidade de carga resultante de cada hidrogénio é espalhada num anel ondulado.
Este manchar para fora, ou “deslocalização,” dos átomos de hidrogénio tem um efeito dramático sobre a forma da molécula da água. Normalmente, a água tem um momento de dipolo eléctrico resultante da sua assimetria, com o oxigénio mais negativo e nos hidrogénios mais positivo. No berilo, a equipa prevê que este dipolo desaparece. Para mais, o centro de massa desloca-se para o eixo central da estrutura em anel duplo. Kolesnikov diz que esta mudança de forma induzida pela tunelagem pode ocorrer noutros espaços confinados onde a água é encontrada, como nas membranas celulares ou nos interfaces minerais.
Os átomos de hidrogénio estão distribuídos em anéis, por isso “a molécula pode, assim, ser considerada como estando num novo estado”, diz Boris Gorshunov do Instituto de Moscovo de Física e Tecnologia. Ele confirma que esta configuração é consistente com a espectroscopia em frequências de terahertz do seu próprio grupo de berilo.
Esta pesquisa foi publicada na Physical Review Letters.
Referências:
B. P. Gorshunov, E. S. Zhukova, V. I. Torgashev, V. V. Lebedev, G. S. Shakurov, R. K. Kremer, E. V. Pestrjakov, V. G. Thomas, D. A. Fursenko, e M. Dressel, “comportamento quântico das moléculas de água confinada a nanocavidades em pedras preciosas”, J. Phys. Chem. Lett. 4, 2015 (2013).
Mais informações: tunelamento quântico de água no Berilo: um novo estado da molécula de água, PRL, journals.aps.org/prl/abstract/10.1103/PhysRevLett.116.167802
Jornal de referência: Physical Review Letters
Fornecida por: Oak Ridge National Laboratory
Leia mais em:
http://phys.org/news/2016-04-state-molecule.html#jCp
http://www.casetechnology.com/source.html
(duoplasmatrom)
https://en.wikipedia.org/wiki/Inelastic_neutron_scattering
https://en.wikipedia.org/wiki/Quantum_tunneling_of_water
http://physics.aps.org/articles/v9/43
http://phys.org/news/2016-04-state-molecule.html
http://science.sciencemag.org/content/351/6279/1310
http://journals.aps.org/prl/abstract/10.1103/PhysRevLett.116.167802
Agradecimentos: à Bioquímica Ana Pereira pela revisão de designações e de propriedades químicas.
5 comentários
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Embora não seja exatamente tunelamento quântico, me fez lembrar da ressonância que acontece em anéis de benzeno, e na mudança nas propriedades do carbono em ligações hibridas 𝛔-𝛔, 𝛔-𝛑 ou 𝛑-𝛑 .
Enfim por algum motivo tenho certa resistência a admitir que possa ser um novo estado da matéria , enquanto não for observado em moléculas diferentes da água, em água não confinada no berilo ,
Sobre a quebra de ligação de hidrogênio da água, isso também acontece em estado líquido .
“Water molecules break bonds through quantum tunneling”
http://www.sciencemag.org/news/2016/03/water-molecules-break-bonds-through-quantum-tunneling?utm_source=sciencemagazine&utm_medium=facebook-text&utm_campaign=quantumwater-3055
Obrigado pelo seu comentário, Ricardo Wong.
O ““Water molecules break bonds through quantum tunneling” liderado por Richardson vem referido no em leia mais na ligação web para a wiki disponível no post. Na Nota 4.
https://en.wikipedia.org/wiki/Quantum_tunneling_of_water#cite_note-4
Concordo que é difícil admitir-se uma nova fase da matéria numa das substâncias mais estudadas da história da Ciência, parece muito como admitir várias formas de gelo, infelizmente responsáveis por um trágico desastre aéreo.
Ajuda se verificar a alteração da pressão, na capacidade térmica e na temperatura, também explícitas nos papers e no post. Que são os parâmetros objectivos que definem uma fase da matéria.
No que eu sinceramente tenho dúvidas, para acompanhar o seu salutar cepticismo é na previsão de zero de momento de polaridade, que a água conceda a sua notável capacidade solvente.
Por isso se focar a sua (muito boa) atenção nesse ponto inseri um paradoxo no post. Refiro que esta mantém (até se provar a previsão tenho que respeitar a abordagem ab initio dos autores, e mesmo uma previsão é sempre uma coisa e uma confirmação é outra.
Obrigado pelo seu foco nos parâmetros, sem duvida fundamentais:
Quanto a hibridização esta ocorre em diversas substâncias e e tanto se pode ver pela ressonância sigma como pelas orbitais sp, sp2 e sp3.
Sim, faz tanto lembrar esse processo que foi justamente o que os cálculos de primeira ordem previam para a molécula da água no Berilo, e no fundo foi a experimentação que veio refutar esse muito verosímil hypothesis, em trabalhos anteriores que estabeleciam um consenso pelos vistos frágil.
Gostaria de ter a sua perspectiva sobre a anulação da polaridade, repare que o Oxigénio está descrito geometricamente localizado “grosseiramente” no centro dos anéis. Mas e em que ângulos, e em relação a que faces do duplo anel hexagonal.
Por isso mesmo prefiro a palavra fase a estado, pois mesmo ultra-confinada a água na pressão do Berilo, este sistema é dinâmico, não é paralisado como uma estátua ou uma figura geométrica induzido pelo diagrama.
Por isso mesmo insisto enfaticamente nas minhas Palestras no Ensino que se requer extremo cuidado com a leitura dos diagramas, são analogias, não são sistemas “ao vivo.”
Para citar Richard Feynman “Jingling things” são sistemas dinâmicos como o som duma campainha, não está essa dissipação descrita no engessamento dum diagrama.
Excelente comentário, muito obrigado. 🙂
Muito obrigado por disponibilizar essa magnifica aula.
Hail from Brazil
Professor pelo menos eu aprendi que os estados da matéria eram : sólido, liquido, gasoso e plasma.
Como pode ser definido este outro estado descoberto?
Olá Reinaldo da Silva, excelente questão.
Dentro das fases da matéria que muito bem aprendeu há sub-categorias, depois há outras fases independentes, junto uma lista que se pode até considerar conservadora:
https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_states_of_matter
Como definir uma fase? Por alterações na capacidade térmica (elação entre a quantidade de calor fornecida a um corpo e a variação de temperatura observada), pressão e temperatura.
Neste caso específico do Berilo nas pedras preciosas e semi-preciosas não há ainda uma designação atribuída, que eu saiba, mas poderemos usar “Fase da matéria no Berilo.” Não é muito imaginativo as respeita o título do artigo científico dos cientistas que fizeram esta incrível descoberta.
Seria até interessante que o Reinaldo e os leitores e as leitoras do AstroPT sugerisse um nome. 🙂
Excelente questão mesmo, francamente gostei muito da sua intervenção. 🙂
Obrigado.