Como medir a distância da Terra ao Sol? Como é que se forma um arco-íris? Como estimar a probabilidade de ganhar o Euromilhões? Como é que funciona o cérebro humano? O que têm estas questões em comum além do facto de já terem sido abordadas neste blogue?
Todas elas são questões científicas inteligíveis. Fazem sentido. O que é que nos garante que de facto uma dada questão “faz sentido”? Nada! A procura por conhecimento científico assenta em várias suposições implícitas. Neste artigo vou reflectir sobre estas suposições.
Suposições Fundamentais
Quando fazemos uma questão estamos implicitamente a fazer uma suposição: estamos a assumir que existe uma resposta. De forma mais genérica, a ciência pretende compreender o universo e para isso assume que há algo a ser compreendido. Isto é, a ciência assume que existe uma verdade! Assume-se que há algo a ser descoberto!
Podemos deduzir que é necessário que assim seja. Nós, como seres pensantes, resultamos de uma certa ordem na natureza e essa ordem é a “verdade” a ser descoberta. Se a “verdade” não existisse, como é que poderíamos aqui estar? O não sabermos não implica que tenhamos chegado a uma demonstração lógica da necessidade de uma verdade. Poderá não existir nenhuma verdade “final”, ou, se existir, não tem que ser única.
Em segundo lugar, além de assumirmos a existência de uma resposta, supomos também que podemos compreender a resposta. A ciência assume que a verdade que procura é inteligível ao ser humano. Ou tanto mais não seja, assume-se que está ao nosso alcance pelo menos uma aproximação inteligível da verdade. Sê-lo-á necessariamente? Não.
Em terceiro lugar, a ciência pressupõe ainda que a verdade é constante, imutável e universal. Respostas para questões suficientemente genéricas devem ser sempre as mesmas, independentemente do local e do momento onde sejam feitas. Em particular, a Física procura leis universais que sejam sempre aplicáveis. Note-se que a lei em si pode definir um processo dinâmico, sobre um fenómeno que pode mudar ao longo do tempo e que pode depender do local em causa. Porém, a lei deverá ser fixa. Por exemplo, a magnitude da força gravítica depende do sítio onde a medimos, porém, a lei que a descreve assume-se aplicável a todo o universo. Esta imutabilidade genérica é essencial na procura de nova ciência, pois sem ela, é como se a ciência feita num laboratório, não fosse comparável à ciência feita noutro laboratório. Como é claro, encontrar as condições que definem o que é comparável e o que é que é “suficientemente genérico” faz parte do empreendimento científico.
Suposições Lógicas
Para pensarmos e conceptualizarmos uma resposta necessitamos assumir que a nossa lógica é aplicável. “Se todos os humanos são mortais e se o Sócrates é humano, logo Sócrates é mortal.” Porque é que este raciocínio tem que ser verdade? A Ciência assume que a Matemática é inerentemente verdadeira e aplicável ao universo. 1+1=2 assume-se sempre verdadeiro, quer no passado, quer no futuro, quer no nosso planeta, quer em qualquer outra parte do universo. A Matemática (que incluí a Lógica) assenta em muitos axiomas, os quais se assumem verdadeiros por serem evidentes em si próprios. Estamos aqui a assumir que o “ser evidente” para nós se traduz em ser verdadeiro. Por exemplo, 1+2 = 2+1, isto é, a ordem com que somamos números é indiferente para o resultado. É óbvio. Não obstante, é em si próprio uma suposição da nossa lógica.
Suposições Empíricas
Segundo o filósofo austro-britânico Karl Popper (1902-1994), “a ciência é a arte da simplificação excessiva sistemática.” Para compreendermos o mundo e criarmos um modelo deste estamos constantemente a fazer simplificações. Muitas vezes são simplificações erradas, como vimos nos artigos sobre os nossos vieses cognitivos. O que distingue a ciência dos disparates que dizemos no dia-a-dia é a sistematização. Porém, a sistematização não nos garante que encontremos a verdade. De um ponto de vista filosófico pode-se argumentar que nenhuma generalização pode ser demonstrada como sendo verdadeira, porque é impossível verificar que não haja contra-exemplos. No entanto, de um ponto de vista pragmático podemos aceitar uma teoria ou modelo como sendo a melhor aproximação que temos dados os exemplos de que dispomos. Aliás, a nossa conivência vai mais longe. Por um lado, a ciência experimental é por norma baseada em aproximações forçadas pelas limitações técnicas nos instrumentos de medida. Por outro lado, a ciência teórica que estabelece os modelos empíricos também se vê muitas vezes forçada a usar aproximações que permitam trazer transparência e compreensão aos modelos. É claro que os cientistas estão cientes destas aproximações e sabem que muitas vezes as mesmas podem estar erradas. Contudo, faz-se a suposição implícita de que é possível fazer progressos fazendo tais aproximações. Isto é, assume-se que seja possível a existência de aproximações “úteis” e até “verdadeiras” dentro de certos limites.
O filósofo escocês David Hume (1711-1776) indicou ainda uma outra suposição empírica: a de que a causalidade existe. Na verdade, a causalidade é apenas uma suposição na forma como pensamos e na ciência que fazemos. Quando constatamos que um evento B foi causado por um evento A, o que observámos foi apenas uma sequência de eventos. A relação entre os eventos é algo deduzido. Quando tropeçamos na esquina de um móvel, assumimos que foi o impacto com o móvel que nos causou dor. Analisando de forma mais detalhada, poderemos encontrar uma sequência de eventos que ligam o momento do impacto com a propagação de um sinal nervoso que nos faz sentir a dor. Porém, por mais vezes que observemos esta sequência, é impossível demonstrar que ela não seja mais que uma correlação. (Não obstante, a Estatística permite-nos demonstrar que em certas circunstâncias um modelo causal é o modelo mais provável dadas as observações registadas.)
Suposições Perceptivas
O filósofo francês René Descartes (1596-1650) tentou encontrar uma base inquestionável para o conhecimento. A base que encontrou apoiou-se na própria questão: para nos questionar-mos, precisamos de existir como ser pensante que coloca a questão. Cogito, ergo sum. “Penso, logo existo.” Curiosamente, filósofos posteriores colocaram em causa este próprio conceito de existência.
Para fazer ciência isto não é suficiente. Para procurarmos conhecer o universo precisamos de observá-lo. Isto significa que somos obrigados a assumir que a nossa percepção é fiável, ou que pelo menos pode-o ser em condições controladas. Acreditamos de forma implícita que a maior parte daquilo que a humanidade percepciona corresponde a pelo menos uma representação incompleta da realidade. Digo a “maior parte”, porque também reconhecemos a existência de ilusões e alucinações.
Assumimos também continuidade naquilo que percepcionamos. Quando fechamos os olhos, supomos que o mundo não desaparece. A árvore que cai no meio da floresta deve fazer um som ao embater no solo, quer lá esteja alguém para a ouvir, quer não. Isto é, supomos que a realidade e as leis físicas não são condicionadas pela nossa percepção. (Não obstante, o acto de observar pode ter consequências no mundo quântico.)
Aliada à percepção, a nossa memória também tem que ser fiável pelo menos até dado ponto. Se aquilo de que nos recordamos for uma má representação daquilo que percepcionamos, de pouco vale que a percepção seja fiável.
Finalmente, a ciência é necessariamente um produto colectivo. Mesmo em casos excepcionais onde um só sujeito faz uma descoberta, a mesma só passa a ser do domínio da ciência quando reconhecida pela comunidade científica. Por um lado, trata-se de um processo de validação e, por outro, trata-se de um processo de transmissão de conhecimento. Um artigo que ninguém compreende não é um artigo científico, é apenas uma curiosidade. Este colectivismo científico traz consigo uma suposição adicional de carácter cognitivo: somos obrigados a assumir que existe concordância perceptiva e interpretativa entre nós humanos. A forma como o cientista A percepciona e interpreta uma experiência no seu laboratório tem que ser inteligível e pelo menos comunicável a um cientista B, para que o cientista B seja capaz de reproduzir a experiência no seu laboratório. A interpretação “final” até poderá ser diferente da primeira que foi sugerida, porém é necessário assumir que essa interpretação esteja ao alcance de todos (ou pelo menos dos especialistas na área). Além disto, fazer ciência é uma construção colectiva onde muitas vezes temos que assumir que alguns dos blocos previamente propostos e demonstrados têm pelo menos alguma validade, pois caso contrário cada cientista teria que começar do zero e o progresso seria eventualmente impossível.
Tanta suposição!! Será que “acreditar” na ciência é semelhante a ter fé numa religião?!
É verdade que para procurarmos conhecimento temos que fazer muitas suposições. Porém, a alternativa não nos leva a lado nenhum. Por exemplo, se assumirmos que não existe algo a ser descoberto, ou, se existir, que não temos capacidade para o compreender, isso implica que a questão morre e que continuamos ignorantes. Pelo contrário, ao sermos optimistas nas nossas suposições estamos a dar-nos uma oportunidade de descobrir algo. Algumas das nossas suposições talvez sejam demasiado optimistas, mas para descobrir que o são é necessário tentar.
Felizmente, hoje em dia não faltam bons motivos para podermos assumir que estas suposições têm mérito. Os telemóveis, por exemplo, não são um fruto que se colhe das árvores… As tecnologias que criámos sugerem de forma convincente de que vale a pena fazer estas suposições. Trata-se, portanto, de uma fé justificada. É uma “fé” que difere da religiosa por promover as questões e não as respostas.
2 comentários
Olá Jonathan,
Obrigado pelo seu comentário e peço desculpa por não ter respondido antes!
Os modelos matemáticos a que me refiro são equações diferenciais que descrevem a dinâmica do cérebro (de forma muito aproximada), tendo a particularidade de permitir simular a transição de um estado que consideramos “saudável” para um estado que definimos ser semelhante ao de uma crise epiléptica (caracterizado por elevada sincronização neuronal). Um modelo simples que tenho usado para este propósito é o da dinâmica de uma rede de osciladores. Cada oscilador representa uma área do cérebro, sendo que a “rede” que une os osciladores é a rede cerebral (que pode ser inferida através de dados experimentais).
Sobre redes já aqui escrevi: https://www.astropt.org/2015/09/02/seis-graus-de-separacao/
Sobre medir sinais do cérebro também: https://www.astropt.org/2019/06/05/o-que-nos-vai-na-cabeca-parte-i/ (E mais 3 partes.)
Com modelos deste tipo, podemos, por exemplo, estudar o efeito de “perturbações” na rede e compreender as consequências na dinâmica do cérebro. Como talvez seja do seu conhecimento, cerca de 1/3 das pessoas com epilepsia não responde à medicação, pelo que podem ser considerados para cirurgia cerebral. Esta tem o propósito de remover o tecido neuronal que se assume responsável pelas crises epilépticas. Infelizmente, nem sempre é claro como localizar esse tecido patológico e, como tal, muitas cirurgias não resultam. O propósito de alguns dos meus estudos foi precisamente encontrar meios alternativos para identificar o tecido patológico com base nesse estudo de “perturbações”. Isto é, com modelos matemáticos posso estudar vários tipos de cirurgias diferentes e tentar prever quais seriam as cirurgias mais bem sucedidas (para cada indivíduo).
Caso tenha um bom domínio de inglês e matemática, poderá tentar ler um dos meus artigos científicos sobre o assunto:
https://journals.plos.org/ploscompbiol/article?id=10.1371/journal.pcbi.1005637
Ou o press release para o público em geral:
https://www.eurekalert.org/pub_releases/2017-08/p-nmi081017.php
Se quiser saber mais, esteja à vontade para perguntar. Acrescento que também tenho a intenção de eventualmente escrever artigos de divulgação científica sobre o meu trabalho científico, para que todos possam perceber o que ando a fazer. 🙂
Abraço,
Marinho
Boa noite, Marinho Lopes! Saudações do Brasil.
Acho que esta é a primeira vez que comento um texto seu, muito embora não seja a primeira que comente textos do AstroPT. Quais seriam estes modelos matemáticos da epilepsia? Em um dos comentários que fiz neste site, cheguei a mencionar ser portador de autismo, porém sei que as neurociências admitem que este nunca vem sozinho/isolado (não sei qual dos dois vocábulos se encaixa melhor, lamento), anda sempre acompanhado de outras patologias e/ou condições. No meu caso em específico, a epilepsia é uma dessas acompanhantes (mais especificamente a do tipo disritmico-paroxística), por isso minha pergunta. Sou leitor contumaz, do tipo que lê até bula de remédio, curioso por praticamente tudo o que cerca o ser humano (incluindo aí a ciência em geral) mas devo confessar que sua descrição de si próprio foi o primeiro texto em que li “modelos matemáticos da epilepsia”. Já li vários artigos e livros sobre o assunto (até para me conhecer um pouco melhor também, em se tratando de fisiologia humana) e nunca nem havia sequer ouvido falar disso. Fiquei curioso.
Atenciosamente, Jonathan.