Pinguins depravados

Desde que Charles Darwin avançou com a ideia da Selecção Sexual, a nossa visão sobre a sexualidade e sobre o comportamento reprodutivo dos animais tem-se vindo a transformar completamente.

Hoje sabemos que a selecção sexual é uma das grandes forças da evolução, que molda as espécies e que pode ter um papel fundamental nas sociedades animais, incluindo a humana. Sabemos também que a homossexualidade não é exclusiva dos humanos, com cada vez mais casos descritos em inúmeras espécies animais.

No entanto, nos primórdios da biologia evolutiva e do naturalismo “moderno”, era difícil aceitar certos “factos da natureza”.

Isso parece ter sido o que aconteceu a George Murray Levick quando participou na expedição do Capitão Robert Scott ao Pólo Sul, nos idos de 1910, como oficial médico da expedição.

Pinguins-de-Adélia em McMurdo Sound, Antártida (Crédito: G. M. Levick, em Scott’s Last Expedition-Volume II, 1913. Dodd, Mead, & Ca, New York)

Ao observar atentamente e por um longo período de tempo o comportamento dos pinguins-de-Adélia, numa colónia do Cabo Adare, ficou de tal forma chocado que as notas que tomou no seu caderno a este respeito estavam escritas, em jeito de código, em grego! Ainda assim, ao regressar a Inglaterra, tentou publicar um artigo intitulado “The natural history of the adelie penguin” (A história natural do pinguim-de-Adélia), mas esse não passou as malhas da puritana sociedade científica da época. A versão publicada não fazia referência ao comportamento sexual e apenas umas meras 100 cópias com a descrição completa foram enviadas a um grupo seleccionado de cientistas.

Estas notas e o artigo “proibido” foram recentemente redescobertas e vão ser publicadas na revista Polar Record, pelas mãos de Douglas G.D. Russell, William J.L. Sladen e David G. Ainley.

Pinguins-de-Adélia em acasalamento no Cabo Adare (Crédito: TheBrockenInaGlory, Wikimedia Commons)

Segundo os autores desta publicação, no panfleto Levick “apresentava dados sobre a frequência da actividade sexual dos pinguins, comportamentos auto-eróticos e comportamentos aparentemente aberrantes de jovens machos e fêmeas sem parceiro que incluíam a necrofilia, abuso sexual, abuso sexual e violência sobre crias, sexo não-procriativo e comportamento homossexual. As suas observações eram, no entanto, rigorosas, válidas e, sabendo o que sabemos hoje, merecedoras de publicação.”

Para além de publicarem o texto original de Levick, Russel e os co-autores apresentam novas interpretações para os dados recolhidos há 100 anos atrás.

Deixo aqui a tradução de algumas dessas notas, que estão agora publicadas:

“Muitas das colónias, especialmente aquelas mais próximas da água, estão pragadas de pequenos gangs de hooligans que pairam na sua periferia e, se uma cria se perde, corre o risco de perder a vida pelas suas mãos. Os crimes que eles cometem são tais que não têm lugar para serem descritos neste livro, mas é deveras interessante notar que, embora a natureza lhes queira dar um emprego, estas aves, como os homens, degeneram com a ociosidade.

Esta tarde tive uma visão extraordinária. Um pinguim estava a praticar sodomia com o corpo de uma ave morta de pescoço branco da sua espécie. O acto durou um minuto completo, a posição adoptada pelo macho não era em nada diferente à que adopta na cópula normal e o acto decorreu até ao final.

Hoje vi outro acto de depravação espantosa. Uma fêmea que tinha sido, de algum modo, ferida severamente na parte traseira estava a rastejar dolorosamente de barriga para baixo. Estava a pensar se deveria ou não matá-la, quando um macho reparou nela e se aproximou. Depois de uma rápida inspeção, ele violou-a, sendo ela incapaz de lhe oferecer resistência.”

 

Actos como estes, embora ainda chocantes para muitos, são hoje considerados pelos biólogos como adaptações ou sub-produtos de adaptações. Mas, naquela época, foram considerados tão escandalosos que foram anotados em grego e nem foram difundidos pela comunidade científica.

Podem ler também a notícia da BBC aqui e a do Público aqui.

4 comentários

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    • Manel Rosa Martins on 19/06/2012 at 11:48
    • Responder

    Os estudos sobre os chimpanzés e os bonobos foram criticados porque os estudiosos alimentavam os animais com bananas, o que aumenta (a alimentação assim fornecida) a agressividade de forma muito marcada.

    Mas posso estar desactualizado porque essa foi uma crítica dos estudos dos anos 1980 e 1990, estava a ser muito prudente ao utilizar a palavra “pontual.”

    Tens indicação de estudos não contaminados mais recentes ou mesmo dessas décadas? Preparei que devido a essa polémica muitos estudos sobre a homossexualidade evitam incidir sobre a frequência, mas lá está, seria, caso confirmes a não contaminação, mais um factor a aprender.

    1. Não sou primatóloga, por isso não estou a par das últimas novidades desse campo, mas vou tentar conseguir bibliografia a respeito com colegas.
      Se bem me recordo, em 2008, no congresso da Animal Behavior Society referiram-se a esta questão, mas não quero estar a fazer afirmações com memórias vagas.

      Entretanto, esta é a publicação, em livro, mais actualizada a este respeito:
      http://www.cambridge.org/gb/knowledge/isbn/item5706975/?site_locale=en_GB

      Parte do livro está visível no Google Books.
      http://books.google.pt/books?id=EftT_1bsPOAC&printsec=frontcover&dq=Animal+Homosexuality&hl=en&sa=X&ei=WtjgT6SoMIO4hAeFxanTDQ&redir_esc=y#v=onepage&q=Animal%20Homosexuality&f=false

      No capítulo “Homosexual Behavior in Pirmates”, pode-se ver, numa tabela com todas as espécies de “macacos do “Velho Mundo” e símios que a maior parte exibe comportamentos homossexuais.

      Estranha-me esse argumento da violência nos bonobos porque, precisamente nos bonobos, é notório o seu “pacifismo” em comparação com os chimpanzés.

  1. Obrigada pelo comentário, Manel!

    “Mesmo na Antárctida, o cientista, como qualquer ser humano, é um produto do seu tempo, dos seus conceitos e preconceitos. ”
    Certíssimo!
    E este é um caso que o demonstra muito bem!

    O trabalho que o Levick desenvolveu foi notável!
    Foi um pioneiro no estudo do comportamento dos pinguins e o primeiro a acompanhá-los durante um ciclo de acasalamento completo.
    É realmente uma pena que todas estas observações ficassem “perdidas” por tanto tempo devido a preconceitos sociais (e científicos).

    Ainda assim, e por muito chocante que fosse para ele aquilo que tinha observado, tentou publicá-lo, transmiti-lo aos pares.
    Não foi o cientista, mas a sociedade que tentou negar a evidência.
    Felizmente, agora esses dados são hoje assumidos e partilhados.

    De notar também que, nalguns animais, como o chimpanzé ou o bonobo, o comportamento homossexual não é pontual, mas muito frequente e com um função social que parece ser clara (a de apaziguamento de relações)

    • Manel Rosa Martins on 19/06/2012 at 02:01
    • Responder

    “…estas aves, como os homens, degeneram com a ociosidade.”

    Também revelador da mentalidade da Revolução industrial, com o clímax trágico no lema “o trabalho deixa-te livre.”

    Muitos ociosos são perfeitamente pacíficos e muitos que são energéticos e pontuais são criminosos.

    Também na época nascia a noção de horário com os caminhos de ferro e os turnos laborais, e a racionalização económica da vida humana assumia proporções nunca atingidas, com milhões de pessoas ora especializadas nas cadeias de produção.

    Mesmo na Antárctida, o cientista, como qualquer ser humano, é um produto do seu tempo, dos seus conceitos e preconceitos.

    Hoje sabermos que mais de 400 espécies diferentes de mamíferos têm comportamentos pontuais homossexuais e sabemos que existem pelo menos 8 tipos de sexualidade humana, mesmo assim o preconceito e a ignorância sobre estes simples factos é patente na grande maioria das pessoas.

    Sobre a sexualidade humana e sobre a dos outros animais, ainda temos, diria, muito que aprender.

    Há pessoas que não sabem que também somos animais, para começar, pensam que há os seres humanos e os bichos, mas nós somos animais.

    Como somos animais, todo o nosso comportamento, incluindo o sexual, é animalesco.

    Os crimes de natureza sexual são usados pelos homens nas suas guerras territoriais, como se vê, infelizmente, em qualquer noticiário, e são usados tanto nas guerras que envolvem naçõs como nas guerras que envolvem um lar.

    Talvez com o maior conhecimento sobre a nossa sexualidade, que tem que forçosamente passar pela educação sexual de todos os organismos vivos desde a instrução primária, possamos um dia atingir a paz na sexualidade, parte tão importante da nossa vida, mecanismo essencial na Evolução.

    Só a reprodução sexual permitiu este grau descomunal de biodiversidade na Terra, a ela devemos a nossa existência.

    Devemos-lhe também conhecê-la bem melhor.

    Excelente pot, nesse sentido, moralmente saudável e equilibrado, parabéns. :))

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