(A supernova SN 2011fe na galáxia M101, no dia 26 de Agosto de 2011. Crédito: Anthony Ayiomamitis)
Em Junho escrevi um artigo sobre a supernova de tipo IIb, SN 2011dh, na M51. Como expliquei na altura, as supernovas podem resultar da explosão termonuclear de uma anã branca (tipo Ia) ou do colapso gravitacional de uma estrela (restantes tipos). Neste artigo pretendo descrever as supernovas de tipo Ia e os processos físicos subjacentes, complementando o que já tinha feito para as supernovas de colapso gravitacional.
(Os diferentes tipos de supernova. Crédito: Swinburne University of Technology)
A supernova SN 2011fe, recentemente descoberta na galáxia M101 é do tipo Ia. Os astrónomos conseguem identificar facilmente supernovas deste tipo pois o seu espectro é dominado numa fase inicial por fortes linhas de absorção de elementos como o silício, o ferro e o cálcio; paralelamente, as linhas de hidrogénio e hélio não estão presentes. Apesar de terem já sido descobertas milhares de supernovas de tipo Ia, a descoberta da SN 2011fe é particularmente importante por duas razões: (a) a descoberta foi feita apenas algumas horas depois da explosão, permitindo o estudo dos primeiros momentos da supernova; (b) a galáxia M101 é relativamente próxima, o que faz com que a supernova tenha um brilho aparente elevado e permite a realização de observações de muito boa qualidade (razão sinal-ruído elevada).
Os astrónomos acreditam que as supernovas de tipo Ia resultam da explosão termonuclear de uma anã branca. De facto, pensa-se que a estrela explode exactamente pelas mesmas razões que uma bomba nuclear: a ocorrência de um conjunto de reacções nucleares, no caso de fusão, descontroladas. As anãs brancas são suspeitas perfeitas para estarem na origem destes eventos por várias razões. Por um lado, as supernovas de tipo Ia ocorrem em todos os tipos de galáxia (irregulares, espirais e elípticas), mas nunca aparecem associadas a regiões de formação de estrelas, o que sugere que provêm de uma população de estrelas mais evoluída. Por outro lado, a grande homogeneidade das suas características (e.g. brilho máximo, espectros e curvas de luz) sugere que as estrelas progenitoras têm de ser muito semelhantes. Finalmente, as simulações de explosões de anãs brancas realizadas até à data apresentam um notável acordo com as observações.
Uma anã branca é o núcleo quente e denso de uma estrela de massa intermédia (< 8 massas solares) que expeliu as camadas exteriores para o espaço ao longo de milhões de anos, maioritariamente constituído pelos produtos da fusão do hélio: carbono e algum oxigénio. O tamanho de uma anã branca depende de forma sensível da sua massa: anãs brancas mais maciças são mais pequenas, menos maciças são maiores. Por exemplo, uma anã branca com 1 massa solar tem um raio semelhante ao da Terra, tendo por isso uma densidade e gravidade superficial enorme. Outro exemplo, algumas anãs brancas encontradas pelo telescópio Kepler, que orbitam estrelas de tipo A, têm massas anormalmente baixas e um tamanho semelhante ao de Júpiter.
(A relação massa-raio para as anãs brancas em unidades solares. Como se pode ver, uma anã branca com 1 massa solar tem aproximadamente 0.01 vezes o raio do Sol, ou seja, um raio semelhante ao da Terra. Notem que o raio tende para 0 (zero) quando a massa se aproxima de 1.4 massas solares. Crédito: cococubed.asu.edu)
As anãs brancas não realizam reacções de fusão no seu interior. Antes, o seu peso é suportado pela pressão degenerada dos electrões dos átomos que a constituem, uma força de origem quântica que deriva do facto dos electrões se encontrarem confinados num volume muito pequeno e não poder existir mais do que um em cada estado quântico disponível (Princípio de Exclusão de Pauli). Esta particularidade das anãs brancas tem implicações importantes no que se segue. Os cálculos demonstram que a pressão degenerada só consegue impedir o colapso gravitacional da estrela se a sua massa for inferior a 1.4 vezes a massa do Sol, o chamado Limite de Chandrasekhar (em honra do astrofísico indiano/paquistanês Subrahmanyan Chandrasekhar que o descobriu).
Isolada, uma anã branca continuaria lentamente a arrefecer no espaço até se tornar invisível, ao fim de muitos milhões de anos. No entanto, quando inseridas num sistema binário compacto as coisas mudam de figura, podendo ocorrer uma sequência de eventos que levam à sua explosão termonuclear, originando uma supernova de tipo Ia. O cenário, mais ou menos consensual, envolve um sistema binário com uma anã branca e uma estrela companheira normal cujo tamanho excede o seu Lóbulo de Roche (em homenagem ao astrónomo francês Édouard Roche), uma superfície imaginária que define o limite do domínio gravitacional da estrela.
(Uma anã branca num sistema binário com uma companheira normal. Crédito: ESO/M. Kornmesser)
Por outras palavras, material fora desta superfície escapa ao campo gravitacional da estrela. Parte desse material é capturado pelo campo gravitacional intenso da anã branca e acaba por se depositar na sua superfície, aumentando a massa da estrela e portanto diminuindo o seu raio. Como consequência, a pressão, densidade e temperatura aumentam no seu interior.
(Os lóbulos de Roche da anã branca e da sua companheira num sistema binário. Note-se como o gás da companheira escapa ao seu lóbulo de Roche e é capturado pela anã branca através do ponto de contacto das superfícies, um dos pontos de Lagrange do sistema. Crédito: Pearson Prentice Hall, Inc.)
Até alguns anos atrás, pensava-se que a captura de material da estrela companheira levaria a anã branca a ultrapassar o limite de Chandrasekar e a colapsar gravitacionalmente. No entanto, cálculos mais detalhados demonstraram que na realidade este limite provavelmente nunca é atingido por este processo. Os cálculos indicam que quando a massa da anã branca atinge um valor crítico, inferior em cerca de 1% ao limite de Chandrasekar, é despoletada a fusão nuclear do carbono no seu interior. Não se sabe ao certo de onde parte o estímulo inicial para a ignição do carbono, se directamente do interior ou se da ignição prévia de algum hélio residual nas camadas exteriores da anã branca que se propaga ao interior. Em qualquer dos casos, a fusão do carbono, uma vez iniciada, é explosiva. De facto, ao contrário do que acontece numa estrela normal que se expande como resposta à libertação de energia do seu interior, a pressão degenerada que sustenta a anã branca não responde ao aumento de temperatura. Desta forma, nas elevadas densidades e temperaturas do interior da estrela, a fusão do carbono desencadeia-se cada vez mais rapidamente e de forma descontrolada.
As reacções propagam-se pela estrela de forma assimétrica, através de uma turbulenta “chama nuclear”. Não existe consenso sobre a forma como a chama se propaga, se por uma detonação supersónica (a chama nuclear cria uma onda de choque que abre caminho à sua frente e comprime e aquece as camadas adjacentes) ou por uma deflagração subsónica (as camadas adjacentes são aquecidas directamente pelo calor libertado pelas reacções na chama nuclear – isto é semelhante ao que acontece na propagação de um incêndio). Ambos os cenários têm algum suporte observacional pelo que poderá ocorrer uma combinação dos dois. Quando a chama nuclear atinge a superfície da estrela, esta é destruída e o gás/plasma com os produtos das reacções de fusão é atirado para o espaço a uma velocidade elevadíssima, entre os 5000 e os 20000 km/s. A supernova torna-se visível e passado alguns dias atinge o seu máximo de brilho, com uma magnitude absoluta de -19.3 (5 mil milhões de vezes mais brilhante que o Sol)!
(Simulação da explosão termonuclear de uma anã branca. A chama nuclear propaga-se em fracções de segundo através da estrela, com grande turbulência, atingindo a superfície (esfera azul). O plasma resultante das reacções de fusão envolve depois a estrela a enorme velocidade e colide com ele próprio sensivelmente do lado oposto à estrela, provocando a destruição da última (filamentos vermelhos vistos à transparência no interior da bolha amarela). Crédito: “Three-Dimensional Simulations of the Deflagration Phase of the Gravitationally Confined Detonation Model of Type Ia Supernovae”, Jordan et al., 2007)
(Simulação da explosão termonuclear de uma anã branca. Crédito: DOE NNSA ASC/Alliance Flash Center at the University of Chicago)
(Comparem as simulações anteriores com esta imagem da explosão da “Gadget”, a primeira bomba nuclear testada no “Trinity Site”, no Novo México, Estados Unidos. A imagem foi tirada 16 mili-segundos depois da explosão. Crédito: Los Alamos National Laboratory)
A temperatura da chama nuclear é tão elevada que, durante a fracção de segundo que demora a destruir a estrela, provoca a fusão do carbono e do oxigénio contidos na anã branca em elementos mais pesados. No caso do carbono são produzidos directamente néon (Ne), sódio (Na), magnésio (Mg) e oxigénio (O). No caso do oxigénio (originalmente na anã branca ou formado na fusão do carbono) são produzidos silício (Si), fósforo (P), enxofre (S) e magnésio (Mg). A partir do momento em que o silício é produzido, uma série de reacções simples produz vários elementos intermédios com uma diferença de 2 no número de protões, pela adição sucessiva de partículas alfa (núcleos de hélio-4). Esta sequência de reacções pára no níquel-56 que é o núcleo atómico mais estável, i.e. a partir deste elemento as reacções de fusão absorvem energia, em vez de a libertarem. O níquel-56 é um elemento radioactivo que decai em colbalto-56 o qual, por sua vez, decai em ferro-56 que é estável. A quantidade de níquel-56 produzida por uma supernova de tipo Ia, normalmente entre 0.5 e 1.0 massas solares, determina em grande parte o seu brilho. De facto, o decaimento radioactivo do níquel-56 e do cobalto-56, com vidas médias curtas de 6 e 77 dias, respectivamente, libertam radiação gama que aquece o remanescente da supernova e o faz brilhar.
(A sequência de reacções desencadeadas pela ignição da fusão explosiva do carbono: fusão do carbono, do oxigénio e do silício. Estas reacções têm lugar numa fracção de segundo, o tempo necessário para a chama nuclear atravessar e destruir a estrela.)
As supernovas de tipo Ia, por serem tão brilhantes e terem características tão homogéneas, são particularmente importantes como referências para o cálculo de distâncias cosmológicas, permitindo determinar com precisão a relação entre a distância de um objecto (e.g. galáxia ou quasar) e o desvio para o vermelho da sua luz, devido à expansão do Universo. O estudo desta relação até grandes distâncias permitiu determinar que o Universo é dominado por um tipo de Energia Negra, cuja natureza permanece um mistério. A homogeneidade das características destas supernovas deve-se ao facto de terem todas origem em anãs brancas com massas muito semelhantes, próximas do limite crítico de -1% do limite de Chandrasekar. Na realidade existem algumas diferenças de luminosidade subtis, mas que estão correlacionadas com as formas das curvas de luz das supernovas, pelo que os astrónomos aprenderam a fazer essa correcção.
Em termos históricos, as supernovas mais brilhantes vistas a partir da Terra foram de tipo Ia. Um exemplo famoso é o da supernova de 1006 que atingiu provavelmente uma magnitude de -7.5 e da qual nos chegaram alguns relatos, como este de Ali Ibn Ridwan, um astrólogo, astrónomo e médico árabe (Cairo, Egipto), que presenciou o espectáculo quando tinha apenas 18 anos de idade:
“I will now describe a spectacle which I saw at the beginning of my studies. This spectacle appeared in the zodiacal sign Scorpio, in opposition to the sun. The sun on that day was 15 degrees in Taurus and the spectacle in the 15th degree of Scorpio. This spectacle was a large circular body, two and a half to three times as large as Venus. The sky was shining because of its light. The intensity of its light was a little more than a quarter of that of moonlight. It remained where it was and it moved daily with its zodiacal sign until the sun was in sextile with it in Virgo, when it disappeared at once.”
(O remanescente da supernova SN 1006 observado em raios X. Crédito: NASA/Chandra X-Ray Observatory)
Outra supernova de tipo Ia notável apareceu mais tarde, em 1572, e foi amplamente observada. O famoso astrónomo dinamarquês Tycho Brahe dá-nos esta vívida descrição do momento em que se apercebeu da existência da “nova estrela”:
“On the 11th day of November in the evening after sunset, I was contemplating the stars in a clear sky. I noticed that a new and unusual star, surpassing the other stars in brilliancy, was shining almost directly above my head; and since I had, from boyhood, known all the stars of the heavens perfectly, it was quite evident to me that there had never been any star in that place of the sky, even the smallest, to say nothing of a star so conspicuous and bright as this. I was so astonished of this sight that I was not ashamed to doubt the trustworthiness of my own eyes. But when I observed that others, on having the place pointed out to them, could see that there was really a star there, I had no further doubts. A miracle indeed, one that has never been previously seen before our time, in any age since the beginning of the world.”
(O remanescente da supernova SN 1572, também chamada “A Estrela de Tycho”, observado em raios X. Crédito: NASA/Chandra X-Ray Observatory)
2 comentários
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Luís, parabéns pelo post! Está uma delicia de ler!
É fantástico que exista em português um blog com esta qualidade ciêntifica. Um verdadeiro serviço público.
Parabéns e nunca parem… 😉
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